São Paulo, domingo, 04 de março de 2007

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Análise

Satírico, Borat renova humor judaico

MOACYR SCLIAR
COLUNISTA DA FOLHA

"Borat" surpreende o espectador pelo humor sarcástico, não raro grosseiro, capaz de apelar para estereótipos, inclusive os anti-semitas. Já no início somos apresentados a uma "corrida do judeu", na qual aldeões de um fictício Cazaquistão perseguem bonecos. Mais adiante o personagem revela a sua crença de que judeus podem virar baratas. E pergunta a um vendedor qual o melhor tipo de arma contra judeus.
É o politicamente incorreto na sua versão mais escrachada e raramente vista no cinema. A surpresa chega ao auge quando se descobre que Sacha Baron Cohen, o criador e intérprete do personagem é, ele próprio, de família judaica e praticante da religião, que inclusive evita os alimentos não permitidos.
Judaísmo e humor é um binômio bem conhecido, mas é isso humor judaico? Para responder à pergunta é preciso definir humor judaico, um tipo peculiar de humor de surgimento relativamente recente.
Não encontramos no judaísmo antigo expressões de humor. Originariamente nômades, enfrentando duras condições de vida, praticando uma religião que enfatizava a culpa, os hebreus não teriam muitos motivos para piadas. Podemos, sim, encontrar na Bíblia, no Talmude e em textos do medievo raízes remotas do humor judaico; mas este emergiu de fato no século 19 e num cenário particular: as aldeias judaicas da Europa Oriental. Surgiu como resposta à pobreza, às perseguições; uma defesa contra o desespero. O humor judaico é peculiar, de auto-ironia; a agressão é arrebatada ao agressor.
É um humor que induz à reflexão; não provoca o riso fácil, e sim o contido, melancólico. Freud, que, por seu judaísmo, se interessava pelo tema, dedicou boa parte de "O Chiste e Sua Relação com o Inconsciente" à análise de historietas judaicas. Nelas assinala a ansiedade misturada ao ceticismo. Este pode atingir as expectativas mais transcendentes, como a espera do Messias. Uma anedota, por exemplo, termina assim: "Não se preocupe. Deus nos protegeu do Faraó e de outros inimigos. Ele nos protegerá do Messias também".
Com a emigração maciça de judeus da Europa Oriental para os Estados Unidos o humor judaico foi transplantado. No começo, correspondia, como nas aldeias, a uma vida difícil. Mas com a melhora da situação social e política as coisas mudaram. Os humoristas judeus tornaram-se populares por seus livros, artigos, peças, filmes ou cartuns. Foi o caso de Jack Benny, Milton Berle, Mel Brooks, Lenny Bruce, Art Buchwald, Red Buttons, Cid Caesar, Eddie Cantor, Al Capp, Rube Golberg, irmãos Marx, Zero Mostel, Saul Steinberg, Gene Wilder, Woody Allen.
E é, de certa maneira, o caso de Sacha Baron Cohen. O humor já não nasce do temor, já não é melancólico. A mãe judia já não é a mulher superalimentadora que queria ver os filhos gordinhos; é a mulher culta, não raro analisada e alertada para o problema da obesidade. Desapareceu igualmente, e Israel disso é uma prova, a figura do judeu encolhido, temeroso. Finalmente, mudou a audiência: Groucho Marx (com quem Borat é muito parecido) faz comédia para o público em geral.
É Cohen um anti-semita, um caso de auto-ódio judaico? Não. Ao contrário, ele satiriza os anti-semitas e outros preconceituosos: "Revelando-se anti-semita, Borat faz com que pessoas exponham seu próprio preconceito", disse o ator. Mas perceber a estratégia exige um não pequeno grau de sofisticação. Daí a polêmica. Que, no entanto, é bom sinal. Fanáticos à parte, é uma recusa do preconceito e uma evidência de que os tempos mudaram. Podemos não gostar do filme. Mas não podemos negar que ele traduz uma nova conjuntura.

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