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JOÃO PEREIRA COUTINHO
Um gênio sem idade
Lendo "Vestido de Noiva", entendemos que poderia ter sido feita na Inglaterra do século 16
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UNS TEMPOS atrás, assistindo a
uma montagem prodigiosa
de "Macbeth", em Londres,
confesso que fixei um momento da
peça que merece partilha. Leitores,
aproximem-se: trata-se do delírio
do general Macbeth (Patrick Stewart, na peça), que acredita ver o
fantasma do rei por ele assassinado
a irromper pelo banquete.
Tudo na cena é memorável: o cenário, uma mistura de cozinha com
matadouro, sob forte iluminação asséptica, de uma frieza hospitalar. A
mesa do banquete ao centro, com os
comensais em traje militar e soviético (um "modernismo" tolerável). E,
ao fundo, um elevador metálico, que
permitia aos atores as entradas e saídas de cena.
Subitamente, o cenário começa a
tingir-se de uma luz vermelha, como
se houvesse sangue a escorrer pelas
paredes. O elevador é ativado e começa a descer em direção ao palco.
Então, a porta se abre (rangendo pesadamente), e de dentro do elevador
sai o rei Duncan, figura sepulcral,
que caminha literalmente sobre a
mesa do festim, em direção a Macbeth. E, este, perante a indiferença
dos comensais (que riem e conversam), aponta para o rei e grita de
horror ante a visão da sua própria
consciência.
Se fixei a cena, não foi apenas pelas qualidades plásticas (e bem aterrorizadoras) da encenação, que provocou algumas desistências ao intervalo (palavra). Foi sobretudo pela
inteligência do jovem encenador
Rupert Goold. Na peça, a assombração do rei fechava a primeira parte.
Mas notável era a forma como se iniciava a segunda: o mesmo cenário,
os mesmos comensais, repetindo os
mesmos gestos e palavras com que
terminava a primeira parte. Como
se alguém tivesse recuado o "filme"
alguns minutos. E, subitamente,
Macbeth volta a apontar (desta vez,
para o vazio) e grita novamente de
horror.
No fim da primeira parte, o público assistia, por dentro, à alucinação
de Macbeth. No início da segunda
parte, assistia, por fora, à realidade
de Macbeth. Ou, se preferirem, o público tinha duas perspetivas: a do
próprio Macbeth e a dos seus convidados perante a loucura aparentemente inexplicável do general. No
meu caderno de notas, apontei de
imediato duas palavras: Nelson Rodrigues.
E se agora relembro a seqüência,
foi por força das circunstâncias. Em
coleção que só pode cobrir um português de inveja, a Folha resolveu
publicar alguns clássicos da literatura brasileira. Machado de Assis,
Lima Barreto, Rubem Fonseca. E o
incontornável Nelson Rodrigues,
com "Vestido de Noiva", a peça que
praticamente reinventou o teatro
brasileiro.
Li e reli a peça nos últimos dias,
para escrever uma breve apresentação dela. Sempre com desconforto e fascínio crescentes. E o que
impressiona em Nelson Rodrigues
não é apenas a qualidade da linguagem (inultrapassável nas crônicas)
nem as obsessões permanentes do
autor, dilacerado por um desejo de
pureza e pela certeza de que esta é
inalcançável por material humano
tão corrupto. O que impressiona é
a absoluta modernidade de Nelson.
Em "Vestido de Noiva", Nelson
Rodrigues não se limita a escrever
sobre uma mulher, Alaíde, tragicamente atropelada na cidade. Nelson vai mais longe e escreve sobre a
consciência dessa mulher: a forma
como, habitando um limbo entre a
vida e a morte, a mente de Alaíde se
desdobra em três planos distintos
-realidade, alucinação e memória- capazes de nos revelar a verdade mais profunda sobre ela.
Tal como em "Macbeth", é na
consciência de uma personagem
que encontramos os seus desejos,
os seus caprichos. Os seus terrores.
No caso de Alaíde, a atração inconfessável pela prostituta Clessi, um
símbolo de libertação e de transgressão. A vontade igualmente inconfessável de matar Pedro, o marido. A forma velhaca como usou e
abusou de Lúcia, sua irmã, seduzindo o homem que ela amava. E o
temor de Alaíde de que Lúcia e Pedro conjuram para assassiná-la.
No plano da realidade, Alaíde está entre a vida e a morte. Mas será
Alaíde vítima ou algoz daqueles
que a rodeiam? Como em Shakespeare, não interessa apenas a Nelson Rodrigues aquilo que mostramos. Interessa o que mostramos, o
que fomos e o que somos. Três estados para uma mesma condição.
"Vestido de Noiva" foi escrito e
encenado em 1943. Lendo a peça,
hoje, entendemos de imediato que
ela poderia ter sido escrita e encenada na Inglaterra isabelina do século 16. Ou no Rio de Janeiro dos
nossos dias. Ou num dos palcos
do West End londrino. É a marca
do gênio. Porque só os gênios não
têm idade.
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