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Ultra aequinoxialem non peccari
EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha
A primeira vez que deparei
com a máxima que encabeça
este artigo foi ouvindo "Não
Existe Pecado ao Sul do Equador", de Chico Buarque e Rui
Guerra. A canção, que fazia
parte originalmente da peça
"Calabar" (banida pela censura no início dos anos 70), ganhou vida própria na voz insinuante e melindrosa de Ney
Matogrosso, como tema da novela "Pecado Rasgado", da TV
Globo, em 1978. Tempos de
diástole.
Anos mais tarde, voltei a tropeçar nela. Curiosamente, a
máxima aparecia em nota de
rodapé de "Raízes do Brasil"
(1936), obra-prima do historiador paulista (e pai de Chico)
Sérgio Buarque de Holanda:
"Corria na Europa, durante o
século 17, a crença de que
aquém da linha do Equador
não existe nenhum pecado: Ultra aequinoxialem non peccari. Barleaus, que menciona o
ditado, comenta-o, dizendo:
"Como se a linha que divide o
mundo em dois hemisférios
também separasse a virtude do
vício'".
Embora a nota de Sérgio
Buarque não desse a fonte da
passagem, localizei-a na "História dos Feitos Recentemente
Praticados no Brasil", obra em
latim do historiador holandês
Gaspar Barléu, luminar da corte do príncipe Maurício de Nassau na Nova Holanda nordestina. (Publicado em Amsterdã,
em 1647, o livro foi traduzido
para o português no início dos
anos 40 e está disponível em co-edição Itatiaia-Edusp.)
Mas o que despertou o meu
interesse pela máxima seiscentista não foi a mera paixão de
antiquário -a curiosidade
ociosa que impele o historiador
de idéias ao encalço, por vezes
febril, de uma genealogia recôndita. Foi a súbita percepção
do uso diametralmente oposto
que pai e filho -historiador e
poeta- fizeram dela.
Aos olhos de Sérgio Buarque,
a máxima tem conotação fortemente negativa. Ela reflete a
realidade amarga do ambiente
de desregramento, permissividade e egoísmo anárquico -os
"desmandos da luxúrias e da
cobiça" de que fala Paulo Prado em "Retrato do Brasil"
(1928)- criado pela aventura
colonial européia nos trópicos.
Sua perspectiva coincide com a
do iluminista francês Diderot
em "Histoire des Deux Indes":
"Além do Equador um homem não é inglês, holandês,
francês, espanhol ou português. Ele se apega somente
àqueles preceitos de seu país de
origem que justificam ou servem de desculpa à sua conduta.
Ele rasteja quando está fraco;
ele é violento quando forte; ele
tem pressa para adquirir, pressa para desfrutar, e é capaz de
todo crime que o conduza mais
rapidamente a seus objetivos.
Ele é um tigre doméstico de volta à selva; a sede de sangue toma conta dele outra vez. É assim que todos os europeus, cada um deles indistintamente,
têm se mostrado nos países do
Novo Mundo. Um delírio coletivo toma conta deles -a sede
de ouro".
Na poética de Chico Buarque,
porém, o sinal se inverte. A ausência da noção de pecado não
reflete mais a nossa incapacidade secular de criar uma ética
cívica e um Estado moderno -
de estabelecer regras impessoais que tornem a nossa convivência menos violenta, iníqua e precária-, mas passa a
ser vista como a senha da realização terrena vedada ao puritano -a busca do prazer sem
peias e sem culpa no plano da
afetividade pessoal.
Onde o historiador lamenta,
o compositor festeja. A canção
de Chico e Guerra nos convida
a desfrutar o instante -"ubi
bene, ibi patria" ("onde se está
bem, aí é a pátria")- e faz a
celebração dionisíaca do excesso e da libidinagem: "Não existe pecado do lado de baixo do
Equador/ Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo
vapor/ Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho/ Um
riacho de amor/ Quando é lição
de esculacho, olha aí, sai de
baixo/ Que eu sou professor".
O que me pareceu instigante
no contraste entre essas duas
posições não é o suposto conflito (superego/pai x id/filho) ou a
necessidade aparente de escolha entre uma e outra. O ponto
é que ambas, em separado, são
inteiramente legítimas e compreensíveis. Mas como integrá-las?
O nó da questão está na satisfação simultânea das exigências que expressam -na possibilidade de harmonização das
perspectivas e valores polares
que as duas abordagens opostas da mesma máxima incorporam.
Como garantir a autoridade
das interdições ético-legais
("pecados") onde elas se fazem
necessárias -evitando assim
as mazelas de uma interação
social corrompida e auto-destrutiva-, mas ao mesmo tempo mantê-las afastadas onde
são rescindíveis, como propõe o
poeta?
Cada cultura incorpora um
sonho, não necessariamente
coerente, de felicidade. Faz
parte do sonho brasileiro,
creio, a conquista da eficiência
produtiva, do poder aquisitivo,
da estabilidade monetária e da
transparência democrática
(sem esquecer, claro, do trânsito ordeiro) das nações civilizadas -é o elemento, digamos
assim, holandês.
Mas também faz parte do sonho brasileiro a afirmação intransigente de nossas afinidades emotivas nas relações pessoais, a celebração da expressividade narcísica e da informalidade nos contatos humanos,
o doce e inconsequente desregramento anárquico dos sentidos na espontaneidade dos afetos, como no "pecado rasgado"
da canção -é a vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa.
O problema é que a satisfação
do primeiro elemento do sonho
tem um preço. Ele exigiria domesticar a imaginação e submeter a personalidade de cada
indivíduo, na vida pública e
profissional, a um "sistema
exigente e disciplinador" de
leis e normas impessoais de
conduta. Nada poderia ser
mais contrário a esse fim do
que as exigências surdas do segundo componente do sonho.
A civilização entristece. Como alcançar os confortos e poderes da racionalidade cinza
de Prometeu (o que pensa antes de agir), sem abrir mão dos
gozos e delícias da impulsividade de Epimeteu (o que age
antes de pensar)?
É precisamente na interseção
dessas duas disposições, ouso
crer, que reside o cerne da nossa utopia secreta de grandeza e
realização. Apurar a forma
sem perder o fogo: trópicos utópicos.
O risco é sonhar com o melhor
de dois mundos e terminar sem
mundo algum. Em vez da civilização sem o mal-estar, o mal-estar sem a civilização. A formiga pobre e a cigarra triste.
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