São Paulo, Quinta-feira, 04 de Março de 1999
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Ultra aequinoxialem non peccari

EDUARDO GIANNETTI

Colunista da Folha

A primeira vez que deparei com a máxima que encabeça este artigo foi ouvindo "Não Existe Pecado ao Sul do Equador", de Chico Buarque e Rui Guerra. A canção, que fazia parte originalmente da peça "Calabar" (banida pela censura no início dos anos 70), ganhou vida própria na voz insinuante e melindrosa de Ney Matogrosso, como tema da novela "Pecado Rasgado", da TV Globo, em 1978. Tempos de diástole.
Anos mais tarde, voltei a tropeçar nela. Curiosamente, a máxima aparecia em nota de rodapé de "Raízes do Brasil" (1936), obra-prima do historiador paulista (e pai de Chico) Sérgio Buarque de Holanda:
"Corria na Europa, durante o século 17, a crença de que aquém da linha do Equador não existe nenhum pecado: Ultra aequinoxialem non peccari. Barleaus, que menciona o ditado, comenta-o, dizendo: "Como se a linha que divide o mundo em dois hemisférios também separasse a virtude do vício'".
Embora a nota de Sérgio Buarque não desse a fonte da passagem, localizei-a na "História dos Feitos Recentemente Praticados no Brasil", obra em latim do historiador holandês Gaspar Barléu, luminar da corte do príncipe Maurício de Nassau na Nova Holanda nordestina. (Publicado em Amsterdã, em 1647, o livro foi traduzido para o português no início dos anos 40 e está disponível em co-edição Itatiaia-Edusp.)
Mas o que despertou o meu interesse pela máxima seiscentista não foi a mera paixão de antiquário -a curiosidade ociosa que impele o historiador de idéias ao encalço, por vezes febril, de uma genealogia recôndita. Foi a súbita percepção do uso diametralmente oposto que pai e filho -historiador e poeta- fizeram dela.
Aos olhos de Sérgio Buarque, a máxima tem conotação fortemente negativa. Ela reflete a realidade amarga do ambiente de desregramento, permissividade e egoísmo anárquico -os "desmandos da luxúrias e da cobiça" de que fala Paulo Prado em "Retrato do Brasil" (1928)- criado pela aventura colonial européia nos trópicos. Sua perspectiva coincide com a do iluminista francês Diderot em "Histoire des Deux Indes":
"Além do Equador um homem não é inglês, holandês, francês, espanhol ou português. Ele se apega somente àqueles preceitos de seu país de origem que justificam ou servem de desculpa à sua conduta. Ele rasteja quando está fraco; ele é violento quando forte; ele tem pressa para adquirir, pressa para desfrutar, e é capaz de todo crime que o conduza mais rapidamente a seus objetivos. Ele é um tigre doméstico de volta à selva; a sede de sangue toma conta dele outra vez. É assim que todos os europeus, cada um deles indistintamente, têm se mostrado nos países do Novo Mundo. Um delírio coletivo toma conta deles -a sede de ouro".
Na poética de Chico Buarque, porém, o sinal se inverte. A ausência da noção de pecado não reflete mais a nossa incapacidade secular de criar uma ética cívica e um Estado moderno - de estabelecer regras impessoais que tornem a nossa convivência menos violenta, iníqua e precária-, mas passa a ser vista como a senha da realização terrena vedada ao puritano -a busca do prazer sem peias e sem culpa no plano da afetividade pessoal.
Onde o historiador lamenta, o compositor festeja. A canção de Chico e Guerra nos convida a desfrutar o instante -"ubi bene, ibi patria" ("onde se está bem, aí é a pátria")- e faz a celebração dionisíaca do excesso e da libidinagem: "Não existe pecado do lado de baixo do Equador/ Vamos fazer um pecado rasgado, suado, a todo vapor/ Me deixa ser teu escracho, capacho, teu cacho/ Um riacho de amor/ Quando é lição de esculacho, olha aí, sai de baixo/ Que eu sou professor".
O que me pareceu instigante no contraste entre essas duas posições não é o suposto conflito (superego/pai x id/filho) ou a necessidade aparente de escolha entre uma e outra. O ponto é que ambas, em separado, são inteiramente legítimas e compreensíveis. Mas como integrá-las?
O nó da questão está na satisfação simultânea das exigências que expressam -na possibilidade de harmonização das perspectivas e valores polares que as duas abordagens opostas da mesma máxima incorporam.
Como garantir a autoridade das interdições ético-legais ("pecados") onde elas se fazem necessárias -evitando assim as mazelas de uma interação social corrompida e auto-destrutiva-, mas ao mesmo tempo mantê-las afastadas onde são rescindíveis, como propõe o poeta?
Cada cultura incorpora um sonho, não necessariamente coerente, de felicidade. Faz parte do sonho brasileiro, creio, a conquista da eficiência produtiva, do poder aquisitivo, da estabilidade monetária e da transparência democrática (sem esquecer, claro, do trânsito ordeiro) das nações civilizadas -é o elemento, digamos assim, holandês.
Mas também faz parte do sonho brasileiro a afirmação intransigente de nossas afinidades emotivas nas relações pessoais, a celebração da expressividade narcísica e da informalidade nos contatos humanos, o doce e inconsequente desregramento anárquico dos sentidos na espontaneidade dos afetos, como no "pecado rasgado" da canção -é a vitalidade iorubá filtrada pela ternura portuguesa.
O problema é que a satisfação do primeiro elemento do sonho tem um preço. Ele exigiria domesticar a imaginação e submeter a personalidade de cada indivíduo, na vida pública e profissional, a um "sistema exigente e disciplinador" de leis e normas impessoais de conduta. Nada poderia ser mais contrário a esse fim do que as exigências surdas do segundo componente do sonho.
A civilização entristece. Como alcançar os confortos e poderes da racionalidade cinza de Prometeu (o que pensa antes de agir), sem abrir mão dos gozos e delícias da impulsividade de Epimeteu (o que age antes de pensar)?
É precisamente na interseção dessas duas disposições, ouso crer, que reside o cerne da nossa utopia secreta de grandeza e realização. Apurar a forma sem perder o fogo: trópicos utópicos.
O risco é sonhar com o melhor de dois mundos e terminar sem mundo algum. Em vez da civilização sem o mal-estar, o mal-estar sem a civilização. A formiga pobre e a cigarra triste.


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