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ARNALDO JABOR
"Temos de beber desta lama luminosa e vital"
Toca o telefone preto.
- Que coisa, rapaz... Você não
liga mais. O que é que há? Está ficando mascarado?
Era o Nelson Rodrigues, falando de sua nuvem de algodão,
num céu azul de papel pintado
com estrelinhas de latão.
- Que é isso?... Eu estava morrendo de saudades. O Brasil tá
complicado...
- Está nada; nunca esteve tão
simples... Parece uma chanchada
da praça Tiradentes. Onde vocês
vêem tragédias, eu vejo poesia.
Esse caso do Pitta e do Garotinho
é a beleza do Brasil que retorna
sempre, mesmo agora que estão
fazendo pose de "modernos".
Pose é a pior coisa que tem, rapaz. O sujeito faz perfil de medalha, fronte alta, ilibado, mas,
quando se levanta, saem lacraias
e escorpiões de seus bolsos. E tudo
graças às mulheres.
As mulheres mudam o Brasil.
Você veja... Pedro Collor falou por
ciúmes. Se Thereza não fosse tão
bela, teria ocorrido o impeachment?
E o José Carlos dos Santos,
aquele barba-azul de Brasília,
aquele burocrata de Dostoiévski?
Dizem que ele matou a mulher
com picareta depois do jantar
com coquetel de camarão porque
ela ia botar a boca no mundo. E
depois ele entregou os anões do
orçamento. E, agora, a Nicéa, essa
Desdêmona vingativa... Tudo isso
é um "Otelo" ao avesso, em que a
loura estrangula o crioulão plástico e ornamental.
Esse Pitta me fascina... Ele não
sua, não transpira. Está sempre
recém-saído do banho, sempre
"alinhado", nunca treme, com
sua voz de barítono.
Mas, mesmo para o preto de
anel no dedo e colarinho engomado, sempre chega um dia em
que alguém lhe joga na cara: "Negro safado!". Eu li que a Nicéa
berrou para ele: "Ajoelha, ajoelha, negro safado!". E ele ajoelhou, na frente da empregada.
- Ele vai virar quibe na mão
dos turcos...
- No Brasil, o branco não gosta do preto. Nem o preto gosta do
preto. O Pitta vai pro pelourinho
em cima do formigueiro, e os
brancos que ele servia farão "desmentidos".
O "desmentido" é a grande invenção nacional. Nenhum tremor, nenhuma salvação. Testas
altas sempre, com os maiores assassinos proclamando como Julios Cesares, como Cíceros: "Jamais conheci fulano. Que Deus
me fulmine se faltei com a verdade!". E "não admito!" e "a honra
de minha família...". Tudo isso
depois de pegar propina de camelô, de roubar pacotes de lixo de
São Paulo, de roubar remédio de
berçário. Eles assaltam até banco
de sangue. A gente imaginava
São Paulo como a terra das grandes jogadas... Mas não, são ladrões de galinha.
A verdadeira Alagoas é a avenida Paulista... E cada dia aparece
mais gente. Até a Zélia apareceu
no Pittagate! É um novelo que
une todos os crimes nacionais e
estrangeiros. Mesmo o PC tinha
coisa com a Máfia italiana. O sujeito bate uma carteira no largo
do Arouche, e ela aparece em
Hong Kong. A globalização da
economia só serviu para internacionalizar o canalha nacional.
- Dá saudades do velho Adhemar de Barros...
- O Adhemar era um cálido
populista de bigodinho, se comparado com esses árabes da "Conexão Esfiha"... Você é um falso
árabe, rapaz... Eu me fascino pela
máfia dos comedores de "babaganuche", amicíssimos, fidelíssimos
entre si, com gergelim escorrendo-lhes pelo queixo...
Esse Yunes é podre de rico. Dizem que ele tem uma cascata artificial com filhote de jacaré na
sala e que vai ao banheiro de cadillac "rabo de peixe"... Ele empresta dinheiro por compulsão,
enfia maços de dólares nos bolsos
dos amigos aos berros: "Leva! Leva! Depois a gente acerta!". E, se o
sujeito hesita: "Que é isso, rapaz?
Recolhe a grana! Poxa, assim você
me ofende!...". E bate nas algibeiras com jucunda satisfação: "Dinheiro há! Dinheiro há!". Só
quem empresta dinheiro é o verdadeiro amigo...
Outro sujeito que me fascina é o
João Carlos Martins, que mostra
a "complexidade do ser humano", como diz você que é metido a
intelectual... Ele é o maior intérprete de Bach do mundo e o
maior amigo do Maluf... Como é
que pode?
- Pelo menos, Nelson, a democracia está mostrando a cara suja
do brasileiro... Somos a caverna
de Ali Babá...
- É... Mas eu acho lindo tudo
isso... Modéstia à parte, parece
meu teatro... E o diálogo extraordinário do Fernandinho Beira-Mar? Com esse nome poético, o
sujeito é uma fera. Você leu?
Pelo celular, pelo satélite! "Corta a orelha dele. Cortou? Agora
faz ele engolir a orelha. Engoliu?
Agora põe ele na linha. Alô? A
orelha está gostosa?" A vítima:
"Perdão, "seu" Beira-Mar!"!
"Quem mandou comer minha
mulher? Agora corta os pés e os
braços. E aí, doeu?" Nunca escrevi
um diálogo tão bom. Sempre a
mulher, o ciúme...
O homem pode viver sem amor,
mas não pode viver sem ódio. Se
não tiver quem odiar, o homem
chupará a própria carótida como
um vampiro de si mesmo...
- E o Rio de Janeiro?
- A Inglaterra tem o Anthony
Blair. Nós temos o Anthony Garotinho. Esse sujeito, em nome da
cambaxirra, acabou um mini-Brizola, pedindo a bênção à polícia.
- É o neopopulismo possível,
ha ha...
- O Rio é um viveiro de cafajestes. Em outras terras, não há o
cafajeste dionisíaco. Só o carioca
é capaz de vaiar até "minuto de
silêncio", é capaz de plantar bananeira em velório. O paulista
rouba de terno, o carioca rouba
às gargalhadas. A contravenção
carioca já foi poética. Hoje perdeu
a classe a ponto de os traficantes
reclamarem: "Não aguento mais
ser roubado por essa polícia...".
Os "homens" queriam enterrar
o Luís Eduardo Soares feito um
sapo de macumba. Hoje é muito
difícil não ser canalha. Tudo pressiona para nosso aviltamento
pessoal! O homem de bem, no
Brasil, é um cadáver mal-informado, não sabe que morreu...
- E aí? Faz o quê, Nelson?
- Pára com essa mania de "solução". Será assim por 6.000
anos...
Consciência social de brasileiro
é medo da polícia. O Código Penal foi escrito por canalhas durante séculos... O sujeito, se for
branco e com algum, rouba o pai
e mata a mãe, mas não se refugia
no porão. Vai correndo se esconder debaixo da camisola negra da
"Justiça". Mas essa lama é vital.
O brasileiro tem de se abaixar
na sarjeta e beber desse esgoto luminoso. É a sua salvação...
- Deus te abençoe, Nelson.
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