São Paulo, terça-feira, 04 de abril de 2000


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ARNALDO JABOR
"Temos de beber desta lama luminosa e vital"

Toca o telefone preto.
- Que coisa, rapaz... Você não liga mais. O que é que há? Está ficando mascarado?
Era o Nelson Rodrigues, falando de sua nuvem de algodão, num céu azul de papel pintado com estrelinhas de latão.
- Que é isso?... Eu estava morrendo de saudades. O Brasil tá complicado...
- Está nada; nunca esteve tão simples... Parece uma chanchada da praça Tiradentes. Onde vocês vêem tragédias, eu vejo poesia. Esse caso do Pitta e do Garotinho é a beleza do Brasil que retorna sempre, mesmo agora que estão fazendo pose de "modernos".
Pose é a pior coisa que tem, rapaz. O sujeito faz perfil de medalha, fronte alta, ilibado, mas, quando se levanta, saem lacraias e escorpiões de seus bolsos. E tudo graças às mulheres.
As mulheres mudam o Brasil. Você veja... Pedro Collor falou por ciúmes. Se Thereza não fosse tão bela, teria ocorrido o impeachment?
E o José Carlos dos Santos, aquele barba-azul de Brasília, aquele burocrata de Dostoiévski? Dizem que ele matou a mulher com picareta depois do jantar com coquetel de camarão porque ela ia botar a boca no mundo. E depois ele entregou os anões do orçamento. E, agora, a Nicéa, essa Desdêmona vingativa... Tudo isso é um "Otelo" ao avesso, em que a loura estrangula o crioulão plástico e ornamental.
Esse Pitta me fascina... Ele não sua, não transpira. Está sempre recém-saído do banho, sempre "alinhado", nunca treme, com sua voz de barítono.
Mas, mesmo para o preto de anel no dedo e colarinho engomado, sempre chega um dia em que alguém lhe joga na cara: "Negro safado!". Eu li que a Nicéa berrou para ele: "Ajoelha, ajoelha, negro safado!". E ele ajoelhou, na frente da empregada.
- Ele vai virar quibe na mão dos turcos...
- No Brasil, o branco não gosta do preto. Nem o preto gosta do preto. O Pitta vai pro pelourinho em cima do formigueiro, e os brancos que ele servia farão "desmentidos".
O "desmentido" é a grande invenção nacional. Nenhum tremor, nenhuma salvação. Testas altas sempre, com os maiores assassinos proclamando como Julios Cesares, como Cíceros: "Jamais conheci fulano. Que Deus me fulmine se faltei com a verdade!". E "não admito!" e "a honra de minha família...". Tudo isso depois de pegar propina de camelô, de roubar pacotes de lixo de São Paulo, de roubar remédio de berçário. Eles assaltam até banco de sangue. A gente imaginava São Paulo como a terra das grandes jogadas... Mas não, são ladrões de galinha.
A verdadeira Alagoas é a avenida Paulista... E cada dia aparece mais gente. Até a Zélia apareceu no Pittagate! É um novelo que une todos os crimes nacionais e estrangeiros. Mesmo o PC tinha coisa com a Máfia italiana. O sujeito bate uma carteira no largo do Arouche, e ela aparece em Hong Kong. A globalização da economia só serviu para internacionalizar o canalha nacional.
- Dá saudades do velho Adhemar de Barros...
- O Adhemar era um cálido populista de bigodinho, se comparado com esses árabes da "Conexão Esfiha"... Você é um falso árabe, rapaz... Eu me fascino pela máfia dos comedores de "babaganuche", amicíssimos, fidelíssimos entre si, com gergelim escorrendo-lhes pelo queixo...
Esse Yunes é podre de rico. Dizem que ele tem uma cascata artificial com filhote de jacaré na sala e que vai ao banheiro de cadillac "rabo de peixe"... Ele empresta dinheiro por compulsão, enfia maços de dólares nos bolsos dos amigos aos berros: "Leva! Leva! Depois a gente acerta!". E, se o sujeito hesita: "Que é isso, rapaz? Recolhe a grana! Poxa, assim você me ofende!...". E bate nas algibeiras com jucunda satisfação: "Dinheiro há! Dinheiro há!". Só quem empresta dinheiro é o verdadeiro amigo...
Outro sujeito que me fascina é o João Carlos Martins, que mostra a "complexidade do ser humano", como diz você que é metido a intelectual... Ele é o maior intérprete de Bach do mundo e o maior amigo do Maluf... Como é que pode?
- Pelo menos, Nelson, a democracia está mostrando a cara suja do brasileiro... Somos a caverna de Ali Babá...
- É... Mas eu acho lindo tudo isso... Modéstia à parte, parece meu teatro... E o diálogo extraordinário do Fernandinho Beira-Mar? Com esse nome poético, o sujeito é uma fera. Você leu?
Pelo celular, pelo satélite! "Corta a orelha dele. Cortou? Agora faz ele engolir a orelha. Engoliu? Agora põe ele na linha. Alô? A orelha está gostosa?" A vítima: "Perdão, "seu" Beira-Mar!"! "Quem mandou comer minha mulher? Agora corta os pés e os braços. E aí, doeu?" Nunca escrevi um diálogo tão bom. Sempre a mulher, o ciúme...
O homem pode viver sem amor, mas não pode viver sem ódio. Se não tiver quem odiar, o homem chupará a própria carótida como um vampiro de si mesmo...
- E o Rio de Janeiro?
- A Inglaterra tem o Anthony Blair. Nós temos o Anthony Garotinho. Esse sujeito, em nome da cambaxirra, acabou um mini-Brizola, pedindo a bênção à polícia.
- É o neopopulismo possível, ha ha...
- O Rio é um viveiro de cafajestes. Em outras terras, não há o cafajeste dionisíaco. Só o carioca é capaz de vaiar até "minuto de silêncio", é capaz de plantar bananeira em velório. O paulista rouba de terno, o carioca rouba às gargalhadas. A contravenção carioca já foi poética. Hoje perdeu a classe a ponto de os traficantes reclamarem: "Não aguento mais ser roubado por essa polícia...".
Os "homens" queriam enterrar o Luís Eduardo Soares feito um sapo de macumba. Hoje é muito difícil não ser canalha. Tudo pressiona para nosso aviltamento pessoal! O homem de bem, no Brasil, é um cadáver mal-informado, não sabe que morreu...
- E aí? Faz o quê, Nelson?
- Pára com essa mania de "solução". Será assim por 6.000 anos...
Consciência social de brasileiro é medo da polícia. O Código Penal foi escrito por canalhas durante séculos... O sujeito, se for branco e com algum, rouba o pai e mata a mãe, mas não se refugia no porão. Vai correndo se esconder debaixo da camisola negra da "Justiça". Mas essa lama é vital.
O brasileiro tem de se abaixar na sarjeta e beber desse esgoto luminoso. É a sua salvação...
- Deus te abençoe, Nelson.


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