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São Paulo, sexta-feira, 04 de abril de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

Pixinguinha - Um choro de saudade

Não sei se ainda há. Mas havia uma lei que proibia dar o nome de pessoas vivas a ruas, praças, becos, pontes, viadutos e demais logradouros públicos. Como se tratava de uma lei brasileira -e mais do que isso, de uma lei carioca-, tinha mais exceções do que regras. E uma dessas exceções, a mais justificada talvez, estava situada num distante subúrbio da cidade: rua Pixinguinha. Ele ainda estava vivo, e como.
A placa é azul, com letras brancas, mas tem um palavrão embaixo que procura explicar o homenageado: "musicólogo". Para um homem que amava a música, a classificação é quase ofensiva. Pixinguinha nem sequer era músico. Era música -e essa seria a melhor palavra para defini-lo, explicá-lo e amá-lo.
Foi Negrão de Lima, então governador da Guanabara, quem oficializou o nome da rua. Negrão aprendeu a amar Pixinguinha por influência de Paulo Bittencourt, dono do "Correio da Manhã", homem a quem custava admirar alguém, mas, quando admirava, era para valer. Antes dos dois, um outro homem de bom gosto já apostava no rapazinho que tocava flauta: Arnaldo Guinle financiou a viagem dos Oito Batutas à Europa, em 1921, naquela que seria a nossa primeira caravana realmente cultural.
Citando o governador Negrão de Lima, o jornalista Paulo Bittencourt e o milionário Arnaldo Guinle, pode-se supor que a glória de Pixinguinha tenha sido imposta de cima para baixo, o que não é verdade. Tampouco se tratou de um dos muitos exemplos em que a fama percorreu o tradicional caminho da arte popular: subiu de baixo para cima, como no caso de Pelé.
Com Pixinguinha, a glória foi total, o amor e a admiração que soube provocar vinham de todos os lados: era o artista de gênio, o homem simples, o papo perfeito, a vida repartida com todos. Quem não gostava dele só podia ser mau-caráter, pois o velho Pixinga realizou, dentro e fora da música, uma das mais doces e gratificantes trajetórias de homem.
Sua personalidade pode ser abordada de diversos modos. A começar pelo seu estranho apelido, feito do carinho de sua avó africana ("pizim dim" significa menino bom) e da gozação carioca de sua moléstia deformadora, bexiga, que, no caso dele, recebia o tratamento carinhoso de bexiguinha. Aceitando os dois apelidos -que mais tarde seriam fundidos em "Pixinguinha"-, ele assumia com humor e consciência a sua raça e a sua circunstância.
Era um negro e era um carioca, como Machado de Assis, Lima Barreto e o padre José Maurício. Um carioca genuíno que não se deixou prostituir nem se avacalhar, emigrando para a zona sul: viveu agarrado aos subúrbios, aos bares que nunca estão na moda e, por isso, se tornam eternos enquanto duram. Agarrou-se também a um feitio de vida sem rancor e sem glória, ao pijama caseiro, à tradição das grandes comilanças dominicais, quando o angu ou a feijoada são para "durar três dias".
Carioca até na morte: o coração ameaçou falhar diversas vezes, mas só foi parar na sacristia de uma igreja em Ipanema, durante um batizado, quase sem agonia e sem escândalo. Só uma coisa faz um carioca do subúrbio ir parar em Ipanema (e vice-versa): batizado ou enterro.
Como carioca, ele teria de se juntar vida afora com outros cariocas: Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Vinicius de Morais, Orlando Silva, que foi, de longe, o seu melhor intérprete ("Rosa" e "Carinhoso"). Isso sem falar na turma da pesada, os antológicos do samba, que constituiriam a velha-guarda, em natural fase de extinção.
Além de carioca, Pixinguinha foi flautista, antes mesmo de ser músico. E adotou a forma mais carioca da música: o chorinho, ao qual, mais tarde, daria uma dimensão bachiana. Como instrumentista, pertence à categoria de nossos poucos virtuoses, ao lado de Benedito Lacerda, Jacó do Bandolim e Baden Powell. Anos depois, seria virtuose em outro instrumento: o sax tenor. Mas, para ganhar dinheiro como orquestrador, curtia o seu piano e foi com ele que tornou lendária a sua capacidade de orquestrar ou arranjar qualquer loucura que lhe entregavam.
Muitos desses arranjos são hoje de domínio público, ou seja, todos cantam e ninguém sabe quem fez, parecendo ter brotado por geração espontânea. É o caso, por exemplo, da introdução de "O Teu Cabelo Não Nega", a marchinha dos irmãos Valença que Lamartine Babo requentou, Castro Barbosa gravou e Eleazar de Carvalho, então fuzileiro naval, fez a tuba dar o ritmo definitivo. O resultado é que até hoje a marchinha funciona como hino oficial do Carnaval.
Como compositor, ele pertence mais à música erudita do que à popular. A maioria dos seus choros são obras-primas de contraponto e fuga, numa faixa que o ouvido apressado -ou rude- apreende apenas um pouco do ritmo ou da melodia. Mesmo assim, algumas de suas composições pertencem ao patrimônio de todas as épocas: agradam a jovens e a velhos, são músicas intemporais, são Pixinguinha.
Ainda em vida, Pixinguinha tornou-se um clássico. Definido e definitivo. Para aqueles que o conheceram e com ele trabalharam, foi um dos mais estupendos exemplares da espécie humana.


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