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CARLOS HEITOR CONY
Pixinguinha - Um choro de saudade
Não sei se ainda há. Mas
havia uma lei que proibia
dar o nome de pessoas vivas a
ruas, praças, becos, pontes, viadutos e demais logradouros públicos. Como se tratava de uma lei
brasileira -e mais do que isso, de
uma lei carioca-, tinha mais exceções do que regras. E uma dessas exceções, a mais justificada
talvez, estava situada num distante subúrbio da cidade: rua Pixinguinha. Ele ainda estava vivo,
e como.
A placa é azul, com letras brancas, mas tem um palavrão embaixo que procura explicar o homenageado: "musicólogo". Para um
homem que amava a música, a
classificação é quase ofensiva. Pixinguinha nem sequer era músico. Era música -e essa seria a
melhor palavra para defini-lo, explicá-lo e amá-lo.
Foi Negrão de Lima, então governador da Guanabara, quem
oficializou o nome da rua. Negrão aprendeu a amar Pixinguinha por influência de Paulo Bittencourt, dono do "Correio da
Manhã", homem a quem custava
admirar alguém, mas, quando
admirava, era para valer. Antes
dos dois, um outro homem de
bom gosto já apostava no rapazinho que tocava flauta: Arnaldo
Guinle financiou a viagem dos
Oito Batutas à Europa, em 1921,
naquela que seria a nossa primeira caravana realmente cultural.
Citando o governador Negrão
de Lima, o jornalista Paulo Bittencourt e o milionário Arnaldo
Guinle, pode-se supor que a glória
de Pixinguinha tenha sido imposta de cima para baixo, o que não
é verdade. Tampouco se tratou de
um dos muitos exemplos em que
a fama percorreu o tradicional
caminho da arte popular: subiu
de baixo para cima, como no caso
de Pelé.
Com Pixinguinha, a glória foi
total, o amor e a admiração que
soube provocar vinham de todos
os lados: era o artista de gênio, o
homem simples, o papo perfeito, a
vida repartida com todos. Quem
não gostava dele só podia ser
mau-caráter, pois o velho Pixinga
realizou, dentro e fora da música,
uma das mais doces e gratificantes trajetórias de homem.
Sua personalidade pode ser
abordada de diversos modos. A
começar pelo seu estranho apelido, feito do carinho de sua avó
africana ("pizim dim" significa
menino bom) e da gozação carioca de sua moléstia deformadora,
bexiga, que, no caso dele, recebia
o tratamento carinhoso de bexiguinha. Aceitando os dois apelidos -que mais tarde seriam fundidos em "Pixinguinha"-, ele
assumia com humor e consciência a sua raça e a sua circunstância.
Era um negro e era um carioca,
como Machado de Assis, Lima
Barreto e o padre José Maurício.
Um carioca genuíno que não se
deixou prostituir nem se avacalhar, emigrando para a zona sul:
viveu agarrado aos subúrbios, aos
bares que nunca estão na moda e,
por isso, se tornam eternos enquanto duram. Agarrou-se também a um feitio de vida sem rancor e sem glória, ao pijama caseiro, à tradição das grandes comilanças dominicais, quando o angu ou a feijoada são para "durar
três dias".
Carioca até na morte: o coração
ameaçou falhar diversas vezes,
mas só foi parar na sacristia de
uma igreja em Ipanema, durante
um batizado, quase sem agonia e
sem escândalo. Só uma coisa faz
um carioca do subúrbio ir parar
em Ipanema (e vice-versa): batizado ou enterro.
Como carioca, ele teria de se
juntar vida afora com outros cariocas: Di Cavalcanti, Villa-Lobos, Vinicius de Morais, Orlando
Silva, que foi, de longe, o seu melhor intérprete ("Rosa" e "Carinhoso"). Isso sem falar na turma
da pesada, os antológicos do samba, que constituiriam a velha-guarda, em natural fase de extinção.
Além de carioca, Pixinguinha
foi flautista, antes mesmo de ser
músico. E adotou a forma mais
carioca da música: o chorinho, ao
qual, mais tarde, daria uma dimensão bachiana. Como instrumentista, pertence à categoria de
nossos poucos virtuoses, ao lado
de Benedito Lacerda, Jacó do
Bandolim e Baden Powell. Anos
depois, seria virtuose em outro
instrumento: o sax tenor. Mas,
para ganhar dinheiro como orquestrador, curtia o seu piano e
foi com ele que tornou lendária a
sua capacidade de orquestrar ou
arranjar qualquer loucura que
lhe entregavam.
Muitos desses arranjos são hoje
de domínio público, ou seja, todos
cantam e ninguém sabe quem fez,
parecendo ter brotado por geração espontânea. É o caso, por
exemplo, da introdução de "O
Teu Cabelo Não Nega", a marchinha dos irmãos Valença que Lamartine Babo requentou, Castro
Barbosa gravou e Eleazar de Carvalho, então fuzileiro naval, fez a
tuba dar o ritmo definitivo. O resultado é que até hoje a marchinha funciona como hino oficial
do Carnaval.
Como compositor, ele pertence
mais à música erudita do que à
popular. A maioria dos seus choros são obras-primas de contraponto e fuga, numa faixa que o
ouvido apressado -ou rude-
apreende apenas um pouco do
ritmo ou da melodia. Mesmo assim, algumas de suas composições
pertencem ao patrimônio de todas as épocas: agradam a jovens e
a velhos, são músicas intemporais, são Pixinguinha.
Ainda em vida, Pixinguinha
tornou-se um clássico. Definido e
definitivo. Para aqueles que o conheceram e com ele trabalharam,
foi um dos mais estupendos
exemplares da espécie humana.
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