São Paulo, terça-feira, 04 de abril de 2006

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CINEMA/CRÍTICA

Irreverente, "V de Vingança" usa pop para criticar direita

SÉRGIO RIZZO
CRÍTICO DA FOLHA

Comediantes mais ferinos costumam dizer que o humor não pode ter compromisso com nada. Tradução: abaixo as patrulhas, sobretudo as autopatrulhas, e de qualquer natureza. Discussão longa, como a crise internacional em torno das charges de Maomé recentemente demonstrou.
"V de Vingança", de James McTeigue, se insere no espectro da cultura pop que também parece dar uma banana a quem exige "responsabilidade" na abordagem de certos assuntos. Neste caso, algo especialmente caro à geopolítica atual, o terrorismo.
A ação ambienta-se no Reino Unido, mas em futuro nebuloso -os EUA se consomem em guerra civil, e o império britânico readquire o antigo protagonismo. Os governantes de plantão mantêm o poder graças a um estado de terror: o perigo mora na esquina, cidadão, e você precisa de nós para viver com segurança.
Depois dos atentados do 11 de Setembro, não há como ignorar as conexões que um argumento como esse estabelece. "V de Vingança" procura reiterá-las. E, caso alguém não tenha entendido, encena versão própria do macabro espetáculo de destruição das torres gêmeas do WTC.
Pela simbologia, o paralelo se aproxima mais do Pentágono, da Casa Branca ou do Capitólio. Um certo anarquismo, distante do significado político do termo, pauta o enfrentamento do poder. Não acredite em ninguém com mais de 30 anos, que use terno e gravata e que ouse dizer que governa em meu nome. "Eles" mentem, manipulam e jogam a polícia para cima de você.
Se compreendido como leitura do cenário sociopolítico ou como distopia a alertar sobre as coordenadas do mundo hoje, esse ponto de partida (e também de chegada) não tem fôlego para sustentar debate. Olhar para o filme em busca de luzes sobre a sociedade ocidental equivale a esperar que uma lanterna portátil ilumine o estádio do Maracanã.
Sintomático que esteja reunida, para a adaptação da "graphic novel" de Alan Moore e David Lloyd, a turma de "Matrix" -o produtor Joel Silver, os diretores Andy e Larry Wachowski (desta vez, roteiristas e produtores) e o assistente de direção James McTeigue (em sua estréia como diretor).
Repete-se em "V de Vingança" o que se obtinha com a saga de Neo (Keanu Reeves): capacidade de reflexão, entendida não como elaboração intelectual, mas como espelhamento. "Matrix" não fez sucesso por acaso: ao organizar em formato visionário impressões cinzentas e paranóicas sobre o mundo que encontram eco em parcela do público jovem, tornou-se porta-voz dela.
Aqui, a elaborada concepção visual e o imenso repertório de alusões a elementos do universo pop (em especial, filmes e romances de ficção científica) servem para a tentativa de vocalizar, com as armas da irreverência (e da irresponsabilidade?), o que o modo de governar de George W. Bush, Margaret Thatcher e outros líderes conservadores projetam sobre quem é afetado por suas ações e se julga excluído do processo, exceto como massa de manobra.
Que essa maneira de tratar política seja também ela populista produz um dos curiosos paradoxos do filme. E que Guy Fawkes -o sabotador católico do século 17 que inspirou Moore e Lloyd- seja incensado fora de contexto revela mais sobre o liqüidificador da cultura de massas do que os realizadores de "V de Vingança" talvez queiram admitir.


V de Vingança
V for Vendetta
   
Direção: James McTeigue
Produção: Alemanha, EUA, 2005
Com: Natalie Portman, Hugo Weaving, Stephen Rea, Stephen Fry
Quando: a partir de sexta no circuito



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