São Paulo, sábado, 04 de abril de 2009

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ANTONIO CICERO

Os vídeos poéticos de Carlos Nader


Por ter aparecido no filme, há dez anos, não conseguia apreciá-lo serenamente na época


POR OCASIÃO da mostra, ainda em cartaz, "Carlos Nader: Ensaios Audiovisuais", cuja curadoria é de Bernardo Vorobow, participei, quarta-feira, de um debate com Carlos Adriano, Caetano Veloso e o próprio Carlos Nader. Conheço e admiro Carlos Nader e o seu trabalho há muito tempo, e já tive a honra de aparecer em dois dos seus vídeos, bem como no filme "Pan-Cinema Permanente". Por isso, cheguei à Cinemateca com algumas ideias sobre o que dizer durante o bate-papo. Entretanto, antes da mesa, assistimos aos vídeos "Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser", "Carlos Nader" e "Concepção".
No vídeo "Carlos Nader", do qual participo, digo algumas coisas sobre a questão da subjetividade, a respeito da qual ele me pedira que falasse. Exatamente por ter aparecido nesse vídeo, porém, eu não havia conseguido apreciá-lo serenamente na época em que ficou pronto, mais de dez anos atrás.
É que, no filme, minha fala é improvisada. Ora, minhas falas improvisadas são, para usar a expressão de Homero, "palavras aladas", não porque sejam excelsas, mas porque merecem rapidamente voar para o passado e serem esquecidas. Repletas de anacolutos, repetições e imprecisões, não passam de rascunhos do que um dia eu talvez escreva, ou de arremedos do que um dia já escrevi. Além disso, desconfio que eu também, como o poeta Henri Michaux, tornei-me escritor "para revelar uma pessoa de cuja existência ninguém suspeitaria ao olhar para mim". Mas volta e meia um amigo me pede -por razões que me são absolutamente ininteligíveis- que faça uma ponta num filme seu e, como nesse caso, acabo cedendo.
O fato é que, não tendo conseguido ver direito o "Carlos Nader" dez anos atrás, na época do seu lançamento, vi-o quarta-feira passada como se o estivesse a ver pela primeira vez. Depois de tanto tempo, já sou quase outra pessoa. Pela primeira vez, apreciei-o como merece ser apreciado: como obra de arte. E ele, como os outros dois que passaram na mesma noite, é belíssimo.
Resultado: fiquei tão emocionado que, na mesa, esqueci o que havia pretendido dizer e falei apenas sobre o que tinha acabado de sentir. E o que me ocorreu foi que essas obras, que se apresentam como documentários, devem ser vistas -lidas- como poemas. Eles não se restringem a documentar pessoas e fatos, mas, através do estabelecimento de um certo modo de olhar e de uma certa sintaxe espaço-temporal produzida pela montagem, revelam-nos, à maneira de poemas verbais, um novo mundo, a sair do já conhecido. Caetano, a quem tampouco havia escapado a natureza poética desses vídeos, explicou brilhantemente de que modos concretos a sintaxe espaço-temporal a que me refiro é análoga a recursos da poesia verbal como ritmos, rimas etc.
"Beijoqueiro: Portrait of a Serial Kisser" fala de um homem cuja patetice nunca me interessara muito. O vídeo, porém, não só mostra na figura patética desse homem uma complexidade maior e mais interessante do que imaginávamos, mas, através do páthos que nele descobre, solicita-nos a pensar mais profundamente sobre os aspectos cômicos e trágicos das relações entre a busca do reconhecimento, a fama e o anonimato no mundo em que vivemos.
Em "Concepção", repete-se de vez em quando, por escrito, um trocadilho com as palavras "estranho" e "entranho". Esse jogo verbal é visualmente traduzido por uma cena que consiste numa endoscopia do próprio Carlos Nader: e quanto mais nele nos entranhamos, mais nos distanciamos dele, que mais estranho nos parece. É claro que exibir o lado de dentro de alguma coisa é fazer dela algo da mesma ordem dos objetos que se encontram do lado de fora. Nesse sentido, a endoscopia transforma o interior em exterior. E estranhamos as entranhas assim exteriorizadas. Por outro lado, entranhamos, por assim dizer, os estranhos, como o beijoqueiro, pois, ao mesmo tempo em que percebemos sua verdadeira estranheza, criamos alguma empatia com eles, quando nos são exibidos em todas as suas verdadeiras dimensões, inclusive profundidade ou interioridade. "Carlos Nader" me lembrou os versos de Fernando Pessoa que dizem: "Entre o sono e o sonho, / Entre mim e o que em mim / É o quem eu me suponho / Corre um rio sem fim". Logo no início, encarando a câmera, Carlos Nader diz que vai confessar um grande segredo. Quando começa a contá-lo, não se ouve o que diz. O segredo não pode ser dito em linguagem prosaica. O vídeo prossegue. O segredo está no mundo. O vídeo o prova.


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