São Paulo, sexta, 4 de abril de 1997.

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CINEMA
Diretor de "Veludo Azul" e "Twin Peaks" lança "A Estrada Perdida", que chega ao Brasil neste mês
Lynch volta a derramar sua esquisitice

KORO CASTELLANO
do "El País"

As 50 anos, depois de sucessos como os filmes "O Homem Elefante", "Veludo Azul" e "Coração Selvagem" (Palma de Ouro em Cannes) e a série de TV "Twin Peaks", David Lynch volta a dirigir cinema em "A Estrada Perdida" (Lost Highway).
Trata-se de uma história esquizofrênica de psicopatas, que estréia no Brasil dia 25 de abril. Leia a seguir trechos de entrevista do cineasta ao "El País".

Pergunta - O que vicê acha de sua fama de ser um cara muito estranho e complicado?
David Lynch -
Acho estranho, porque na verdade sou bastante normal. Mas acontece que há algumas coisas que, quando escritas, acabam se transformando em verdades.
Pergunta - Você é especialista em criar situações perturbadoras.
Lynch -
Bem, isso se deve ao detetive que todos temos dentro de nós. Está vendo este abajur sobre a mesa? Parece ser só um abajur, mas dentro há fios elétricos e eu sei que estão enrolados de uma forma determinada porque já o desmontei para ver como funciona.
Pergunta - Você foi uma criança muito problemática?
Lynch -
Veja, meus pais nunca me entenderam, mas sempre me apoiaram. Por exemplo, nunca se recusaram a me dar dinheiro, embora durante por muito tempo eu não quisesse ter contato com eles. Mas não fui um menino estranho, embora todos gostem de lembrar que vivia dissecando animais.
Pergunta - Agora você sabe o que buscava naquela época?
Lynch -
Sim, texturas. De todos os tipos, suaves, ásperas, rugas, cabelo, carne, feridas, pigmentos, ossos, terra, madeira, metal... Cada coisa tem sua própria forma, sua própria textura, seu próprio ser. A descoberta é apaixonante. Eu sempre fui muito curioso.
Pergunta - "A Estrada Perdida" é uma oportunidade de recuperar sua reputação depois de fracassos como a série de TV "On the Air" ou do filme "Os Últimos Dias de Laura Palmer", mas a impressão que eu tenho é que você não dá a mínima para a sua reputação.
Lynch -
É verdade, porque isso não depende de você. E na minha opinião não foram fracassos, porque a gente se divertiu muito enquanto trabalhava.
Eu gosto de fazer filmes e de manter o controle desde o começo até o fim. Mas as vezes o fim é muito deprimente, porque acabamos entrando em algo que não podemos controlar. Não se sabe se o destino estará a seu lado ou não.
Mas quando se sabe que se fez um bom trabalho, o fracasso não importa. O sucesso é algo muito perigoso, porque além de enganoso faz com que você se sinta importante. Um fracasso é uma libertação, porque como já chegou ao fundo do poço a única opção é subir. É uma sensação de liberdade. Na verdade, fracassar é lindo.
Pergunta - Você tem uma longa lista de obsessões, começando pelos acidentes de trânsito.
Lynch -
Não sou eu, isso acontece com todos nós. Quando há um acidente em uma rodovia todo mundo pára para olhar. Há um tipo de fascinação em ver o que poderia ter acontecido, e a realidade sempre nos causa assombro. Por isso, acidentes nos atraem como um imã. Qualquer pessoa que dirija ou que esteja preocupada com morte, ferimentos ou tristeza, se sente compelida a parar e a observar.
Pergunta - Próxima obsessão: os dentistas.
Lynch -
Tenho os dentes moles e por isso sempre precisei ir muito ao dentista. E isso sempre foi uma experiência horrível, muito sofrida. Foi assim até encontrar o dr. Chin, e desde então acho que ele é o melhor dentista do mundo. Ele nunca me machucou. Pode até me aplicar uma injeção que nem sinto a picada e quando trabalha na minha boca é extremamente cuidadoso... É um artista. Sempre me explica o que está fazendo e gosto de imaginar o procedimento. Sou seu cliente há 25 anos.
Pergunta - Quer dizer que é um tipo de psicanalista?
Lynch -
Bem, é muito melhor do que um psicanalista. Na primeira vez que fui a um psicanalista perguntei se o tratamento poderia afetar a minha criatividade, e ele me respondeu: "Vou ser honesto com você, David, é bem provável que afete". Então eu disse muito obrigado, fui embora e nunca mais voltei, porque com as coisas mágicas -as idéias- é melhor não brincar. Essas coisas são sérias. Mas com o dr. Chin não tenho esse problema, gosto das suas ferramentas, das suas máquinas...
Pergunta - Terceira obsessão: o café. Quantos cafés toma por dia?
Lynch -
O café é um condutor do pensamento, é uma substância que provoca as idéias. O café me deixa feliz, é como uma droga, mas também é um ritual. Quando estava fazendo "Eraser Head" bebia 40 cafés por dia e fumava 40 cigarros. Depois parei de fumar, fique sem fumar durante 20 anos.
Pergunta - E agora voltou a fumar?
Lynch -
É, faz um ano e meio. Comecei a fumar charuto com um amigo todos os sábados à noite e... bem, não deveria ter tocado nos charutos. Eles me fazem lembrar da Espanha... Fiz uma exposição em Valência e quase fiquei louco.
Os espanhóis são as pessoas mais criativas do mundo, são surrealistas. Eu nunca tinha terminado o almoço às seis da tarde nem começado o jantar à uma da manhã. Todo mundo tinha dois ou três charutos no bolso, e ficamos fumando a noite toda... foi maravilhoso.
Sei que preciso parar de fumar, mas pelo menos consegui largar o açúcar. O açúcar deixa as pessoas felizes, mas agora faz três ou quatro meses que não uso açúcar, estava engordando bastante. Está vendo como as minhas obsessões são bem normais? Açúcar, café, cigarros... o que há de estranho em tudo isso?
Pergunta - É verdade que entre seus tesouros está o útero de uma amiga, conservado em formol?
Lynch -
Não é um dos meus tesouros, mas tenho muito carinho por ele. É o útero de Rafaela de Laurentiis, que foi a minha produtora em "Duna". Foi operada e achou que eu gostaria de tê-lo. Acertou.
Pergunta - E depois disso você ainda se acha normal?
Lynch -
Por que não? As pessoas colecionam as coisas mais absurdas. Se eu colecionasse úteros até entenderia que me achassem estranho. Mas só tenho um!

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