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LIVROS LANÇAMENTOS
Massi organiza escritos de Iberê Camargo
ALVARO MACHADO
especial para a Folha
Não foi apenas com pincéis e telas que Iberê Camargo
(1914-1994), o maior pintor expressionista brasileiro, escarafunchou sua incurável ferida existencial.
Em obra que o jornalista e especialista em literatura brasileira
Augusto Massi organizou a partir
de encontros com Iberê em seus
últimos quatro anos de vida, vem
à luz agora um novo aspecto da face literária do artista plástico gaúcho.
O livro "Gaveta dos Guardados"
será lançado no próximo mês,
reunindo páginas avulsas escritas
entre os anos de 1940 e 1994, com o
propósito de compor um dia uma
autobiografia.
O câncer impediu a finalização
da tarefa pelo "homem-pintor",
como Iberê se denomina nesses
textos, mas sua viúva, Maria Camargo, entregou essa herança a
Augusto Massi.
Privando da amizade do artista
nos últimos tempos, Massi realizou o trabalho com envolvimento
afetivo e um olho crítico: excluiu,
por exemplo, os textos mais técnicos e conferências sobre pintura,
que seguem os moldes de "A Gravura", manual que foi publicado
em 1992.
Esses deverão compor um futuro volume. Massi fará conhecer
melhor ainda a vertente de ficcionista de Camargo, com a preparação de um livro de contos inéditos,
nos moldes de "No Andar do
Tempo", que o pintor publicou
em 1988, pela editora L&PM.
As folhas de "Gaveta dos Guardados" têm vocabulário simples e
efeito cortante.
Investigam a natureza da arte e
do tempo, o fenômeno da memória e a dor da perda.
Os temas poderiam ter saído diretamente da saga proustiana em
busca do tempo perdido (até o beijo de boa noite da mãe é evocado),
porém o estilo é bem diverso: narrativas e reflexões carregam-se do
mesmo tormento expressionista
que marca suas pinturas. São de
elaboração refinada, mas ao mesmo tempo têm características concisas e impactantes.
Descrições plásticas detalhadas e
intensas permeiam quase tudo.
Em seu prefácio para o livro, Augusto Massi chega a evocar o romance "O Estrangeiro", escrito
por Albert Camus, que descreve a
importância da luz e do clima na
circunstância de um confronto de
morte.
De fato, em "Guardados" será
possível ler pela primeira vez a
narrativa de Iberê para o episódio
em que matou a tiros um homem
(em 1980, no Rio, em legítima defesa), fato que transformou sua vida e sua pintura.
Outros dois momentos fundamentais estão vazados no livro:
sua experiência mística de duplicação corporal ("O Duplo") e a
convivência com o câncer ("Hiroshima") (leia trechos nesta página).
Em Porto Alegre, começa a concretizar-se a fundação que preservará sua memória e educará artistas -memória e educação são
motes de seus escritos.
O prédio principal está sendo erguido em terreno doado pelo governo do Rio Grande do Sul, em
frente ao rio Guaíba.
"Poderá ser algo como as fundações espanholas Miró e Tàpies",
arrisca Massi, que no texto de orelha de "Guardados" sintetiza sobre
o artista: "Nunca usou disfarce de
operário, nem posou de vaca sagrada. Era, efetivamente, um criador. (...) Dentre nossos pintores,
foi quem levou adiante, de forma
mais radical, a vertente negativa
da modernidade".
Leia a seguir trechos de entrevista do organizador de "Gaveta dos
Guardados" à Folha.
Livro: Gaveta dos Guardados
Autor: Iberê Camargo
Organização: Augusto Massi
Editora: Edusp
Preço: não definido (180 págs.)
Lançamento: dia 20/05, às 20h, no Ática
Shopping Cultural (av. Pedroso de Moraes,
858, SP, tel. 011/867-0022); na ocasião será
realizado um debate sobre o autor entre
Augusto Massi, Rodrigo Naves e Paulo
Pasta
Folha - Por que parte desse livro,
classificado como de memórias,
parece ficção, havendo mesmo parábolas de estilo oriental?
Augusto Massi - Toda a obra literária de Iberê tem fundo autobiográfico, até os contos publicados em 88.
Com relação a esses textos que
organizei e que o próprio autor
anunciava como livro de memórias, vê-se que ele tinha a necessidade de inventar um destino para
si, um enredo para sua própria vida.
Não há preocupação em contar
fidedignamente. Busca-se a atmosfera e as coisas essenciais. De
minha parte, dei aos papéis uma
espinha dorsal, agrupando núcleos temáticos: infância, pintura,
as cidades, os amigos etc.
Folha - Como se interessou pelo
artista?
Massi - Em 1991, fui a uma feira
literária em Porto Alegre e topei
com o livro "No Andar do Tempo". Fiquei fascinado com a riqueza de sua escritura e procurei o autor.
Depois acabei fazendo com ele
duas longas entrevistas que foram
publicadas no caderno Mais!, da
Folha. Um dia propus o livro de
memórias e ele aceitou como um
projeto comum.
Achei que tudo se perdera com a
sua morte, até que sua viúva lembrou dessas conversas e me enviou
um volume pré-organizado, que
modifiquei inteiramente, privilegiando a veia de escritor de Iberê.
Folha - Como era o pintor no trato pessoal?
Massi - O "homem-pintor"
amadurecido parecia querer voltar
sempre às coisas essenciais, ao
"pátio da infância", como ele costumava dizer.
Pessoalmente, a secura de sua
obra dava lugar a extrema afetividade, generosidade e refinamento
de tratamento.
Bom papo, gostava da convivência, um contraponto ao seu agudo
sentimento de solidão.
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