São Paulo, sábado, 4 de abril de 1998

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LIVROS LANÇAMENTOS
Massi organiza escritos de Iberê Camargo

ALVARO MACHADO
especial para a Folha

Não foi apenas com pincéis e telas que Iberê Camargo (1914-1994), o maior pintor expressionista brasileiro, escarafunchou sua incurável ferida existencial.
Em obra que o jornalista e especialista em literatura brasileira Augusto Massi organizou a partir de encontros com Iberê em seus últimos quatro anos de vida, vem à luz agora um novo aspecto da face literária do artista plástico gaúcho.
O livro "Gaveta dos Guardados" será lançado no próximo mês, reunindo páginas avulsas escritas entre os anos de 1940 e 1994, com o propósito de compor um dia uma autobiografia.
O câncer impediu a finalização da tarefa pelo "homem-pintor", como Iberê se denomina nesses textos, mas sua viúva, Maria Camargo, entregou essa herança a Augusto Massi.
Privando da amizade do artista nos últimos tempos, Massi realizou o trabalho com envolvimento afetivo e um olho crítico: excluiu, por exemplo, os textos mais técnicos e conferências sobre pintura, que seguem os moldes de "A Gravura", manual que foi publicado em 1992.
Esses deverão compor um futuro volume. Massi fará conhecer melhor ainda a vertente de ficcionista de Camargo, com a preparação de um livro de contos inéditos, nos moldes de "No Andar do Tempo", que o pintor publicou em 1988, pela editora L&PM.
As folhas de "Gaveta dos Guardados" têm vocabulário simples e efeito cortante.
Investigam a natureza da arte e do tempo, o fenômeno da memória e a dor da perda.
Os temas poderiam ter saído diretamente da saga proustiana em busca do tempo perdido (até o beijo de boa noite da mãe é evocado), porém o estilo é bem diverso: narrativas e reflexões carregam-se do mesmo tormento expressionista que marca suas pinturas. São de elaboração refinada, mas ao mesmo tempo têm características concisas e impactantes.
Descrições plásticas detalhadas e intensas permeiam quase tudo. Em seu prefácio para o livro, Augusto Massi chega a evocar o romance "O Estrangeiro", escrito por Albert Camus, que descreve a importância da luz e do clima na circunstância de um confronto de morte.
De fato, em "Guardados" será possível ler pela primeira vez a narrativa de Iberê para o episódio em que matou a tiros um homem (em 1980, no Rio, em legítima defesa), fato que transformou sua vida e sua pintura.
Outros dois momentos fundamentais estão vazados no livro: sua experiência mística de duplicação corporal ("O Duplo") e a convivência com o câncer ("Hiroshima") (leia trechos nesta página).
Em Porto Alegre, começa a concretizar-se a fundação que preservará sua memória e educará artistas -memória e educação são motes de seus escritos.
O prédio principal está sendo erguido em terreno doado pelo governo do Rio Grande do Sul, em frente ao rio Guaíba.
"Poderá ser algo como as fundações espanholas Miró e Tàpies", arrisca Massi, que no texto de orelha de "Guardados" sintetiza sobre o artista: "Nunca usou disfarce de operário, nem posou de vaca sagrada. Era, efetivamente, um criador. (...) Dentre nossos pintores, foi quem levou adiante, de forma mais radical, a vertente negativa da modernidade".
Leia a seguir trechos de entrevista do organizador de "Gaveta dos Guardados" à Folha.


Livro: Gaveta dos Guardados
Autor: Iberê Camargo
Organização: Augusto Massi
Editora: Edusp
Preço: não definido (180 págs.)
Lançamento: dia 20/05, às 20h, no Ática Shopping Cultural (av. Pedroso de Moraes, 858, SP, tel. 011/867-0022); na ocasião será realizado um debate sobre o autor entre Augusto Massi, Rodrigo Naves e Paulo Pasta

Folha - Por que parte desse livro, classificado como de memórias, parece ficção, havendo mesmo parábolas de estilo oriental?
Augusto Massi -
Toda a obra literária de Iberê tem fundo autobiográfico, até os contos publicados em 88.
Com relação a esses textos que organizei e que o próprio autor anunciava como livro de memórias, vê-se que ele tinha a necessidade de inventar um destino para si, um enredo para sua própria vida.
Não há preocupação em contar fidedignamente. Busca-se a atmosfera e as coisas essenciais. De minha parte, dei aos papéis uma espinha dorsal, agrupando núcleos temáticos: infância, pintura, as cidades, os amigos etc.
Folha - Como se interessou pelo artista?
Massi -
Em 1991, fui a uma feira literária em Porto Alegre e topei com o livro "No Andar do Tempo". Fiquei fascinado com a riqueza de sua escritura e procurei o autor.
Depois acabei fazendo com ele duas longas entrevistas que foram publicadas no caderno Mais!, da Folha. Um dia propus o livro de memórias e ele aceitou como um projeto comum.
Achei que tudo se perdera com a sua morte, até que sua viúva lembrou dessas conversas e me enviou um volume pré-organizado, que modifiquei inteiramente, privilegiando a veia de escritor de Iberê.
Folha - Como era o pintor no trato pessoal?
Massi -
O "homem-pintor" amadurecido parecia querer voltar sempre às coisas essenciais, ao "pátio da infância", como ele costumava dizer.
Pessoalmente, a secura de sua obra dava lugar a extrema afetividade, generosidade e refinamento de tratamento.
Bom papo, gostava da convivência, um contraponto ao seu agudo sentimento de solidão.



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