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CONTARDO CALLIGARIS
Escoteiro, homossexual e gentleman
Na semana passada, perante a
Corte Suprema dos Estados Unidos, foi debatido o caso dos escoteiros e de James Dale.
Eis a história. Dez anos atrás,
Dale era estudante universitário e
chefe escoteiro. Ele também co-presidia uma organização de defesa dos direitos dos estudantes
gays e, a esse título, apareceu na
imprensa. O conselho dos escoteiros comunicou imediatamente a
Dale sua exclusão, alegando que o
escotismo era incompatível com a
homossexualidade.
Dale acionou por discriminação. A Corte Suprema do Estado
de Nova Jersey lhe deu razão. Os
escoteiros apelaram para a instância última: a Corte Suprema
dos EUA.
Na discussão do caso, foram
evocados alguns precedentes. A
favor de James Dale há, por exemplo, a decisão pela qual a Corte
forçou o Rotary Club a admitir
mulheres. A favor dos escoteiros,
há uma decisão que rechaçou o
protesto de grupos gays impedidos
de marchar no desfile do Dia de
Saint Patrick, patrono dos irlandeses.
Essas decisões opostas são motivadas pelo mesmo princípio. A
Corte parece pensar que o direito
de escolher livremente com quem
a gente se associa deve ser garantido somente quando a seleção
dos membros é ligada às intenções
fundamentais do grupo.
Por exemplo imaginário, o Clube dos Machões, que se reúne para
seus membros compararem o tamanho de seus órgãos penianos, é
autorizado a não admitir mulheres. Pois ser um clube só de homens corresponde ao propósito
fundamental da associação.
Ora, o Rotary Club se reúne para que seus membros estendam a
rede de suas relações sociais e profissionais. Esse propósito não justifica a exclusão de mulheres. Inversamente, no caso do Dia de
Saint Patrick, a reunião se propunha a celebrar o santo patrono. Os
grupos gays queriam desfilar para
promover seus direitos. A inclusão
dos gays, nesse contexto, configuraria uma transformação do intento original da reunião.
Um princípio formal pareceria,
em suma, poder orientar a decisão. Mas escolhamos um outro
exemplo. Um partido neonazista
teria direito de excluir judeus, ciganos e gays? Segundo o princípio
formal exposto, a resposta seria
afirmativa, pois o dito partido seria uma associação de racistas.
Admitindo judeus etc., ele se desnaturaria.
Mesmo assim, esse partido seria
considerado anticonstitucional e
discriminatório. Na verdade, o
que é justo ou injusto não depende de um cálculo formal, mas de
nossa apreciação da situação histórica concreta e do estado de nossas idéias éticas.
É o que acontece também no caso dos escoteiros contra Dale. Eis o
dilema. Ser escoteiro é sinônimo
de uma compostura moral, ao
ponto em que "escoteiro" se tornou metáfora (irônica) de um
comportamento excessivamente
bondoso. Os escoteiros acham que
ser gay não é compatível com essa
compostura. De fato, a Corte deve
decidir se a orientação sexual de
um sujeito compromete ou não
suas qualidades morais. Ou seja,
sendo homossexual, é possível ser
bom, generoso, altruísta, correto,
sincero e gentleman?
Depois de anos de atenção da
imprensa, segundo os escoteiros,
readmitir Dale significaria declarar publicamente que ser gay é
compatível com o ideal moral que
eles encarnam. Para Dale, recusar
sua queixa significaria declarar
que a homossexualidade é uma
falha moral. A decisão da Corte
Suprema mostrará qual é a parte
de hipocrisia que permanece atrás
das bonitas declarações de tolerância do multiculturalismo.
A Justiça americana reflete provavelmente uma ideologia média,
não só americana. Em julho,
quando os juízes se pronunciarão,
saberemos se hoje, para essa ideologia média, moralidade e homossexualidade são conciliáveis
ou não.
Mas o caso levanta ainda uma
outra questão. O escotismo pede
um certo recalque do desejo sexual. Presume-se que os escoteiros
pensem em outra coisa que em sexo. Ora, a história de James Dale
atrapalha esse recalque. Ela perturba o silêncio do sexo. Tanto
mais que vige um preconceito ridículo segundo o qual quem não é
heterossexual e conforme o figurino deve ser especialmente obcecado por sexo. Certamente, Dale
não é o primeiro chefe escoteiro
homossexual. Mas, pela exposição
pública do caso, ele pisca como
um letreiro luminoso entre os escoteiros: "Há desejo sexual por
aqui!".
Problema para os escoteiros?
Sem dúvida. Mas talvez bem-vindo. Pois estaria na hora de nossa
cultura aperfeiçoar maneiras de
conter o desejo sexual que sejam
diferentes do recalque.
Há uma série de situações sociais (família, escola, escritório,
Exército e também escotismo) em
que, com razão, preferimos que o
desejo sexual não oriente nossas
ações. Mas, aparentemente, conseguimos escantear o desejo sexual apenas negando sua existência.
A preferência pelo recalque manifesta sempre que o censor é o
verdadeiro "tarado", ao ponto em
que a exclusão lhe parece ser o
único remédio, como no caso dos
escoteiros: "Sexo? Que saia daqui
quem falou!".
Seria preferível aprender a conviver com o desejo sexual, a reconhecê-lo, sem negá-lo e sem ter de
submeter indiscriminadamente
nossas vidas a suas exigências e
seduções.
E-mail: ccalligari@uol.com.br
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