São Paulo, quinta-feira, 04 de maio de 2000


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CONTARDO CALLIGARIS

Escoteiro, homossexual e gentleman

Na semana passada, perante a Corte Suprema dos Estados Unidos, foi debatido o caso dos escoteiros e de James Dale.
Eis a história. Dez anos atrás, Dale era estudante universitário e chefe escoteiro. Ele também co-presidia uma organização de defesa dos direitos dos estudantes gays e, a esse título, apareceu na imprensa. O conselho dos escoteiros comunicou imediatamente a Dale sua exclusão, alegando que o escotismo era incompatível com a homossexualidade.
Dale acionou por discriminação. A Corte Suprema do Estado de Nova Jersey lhe deu razão. Os escoteiros apelaram para a instância última: a Corte Suprema dos EUA.
Na discussão do caso, foram evocados alguns precedentes. A favor de James Dale há, por exemplo, a decisão pela qual a Corte forçou o Rotary Club a admitir mulheres. A favor dos escoteiros, há uma decisão que rechaçou o protesto de grupos gays impedidos de marchar no desfile do Dia de Saint Patrick, patrono dos irlandeses.
Essas decisões opostas são motivadas pelo mesmo princípio. A Corte parece pensar que o direito de escolher livremente com quem a gente se associa deve ser garantido somente quando a seleção dos membros é ligada às intenções fundamentais do grupo.
Por exemplo imaginário, o Clube dos Machões, que se reúne para seus membros compararem o tamanho de seus órgãos penianos, é autorizado a não admitir mulheres. Pois ser um clube só de homens corresponde ao propósito fundamental da associação.
Ora, o Rotary Club se reúne para que seus membros estendam a rede de suas relações sociais e profissionais. Esse propósito não justifica a exclusão de mulheres. Inversamente, no caso do Dia de Saint Patrick, a reunião se propunha a celebrar o santo patrono. Os grupos gays queriam desfilar para promover seus direitos. A inclusão dos gays, nesse contexto, configuraria uma transformação do intento original da reunião.
Um princípio formal pareceria, em suma, poder orientar a decisão. Mas escolhamos um outro exemplo. Um partido neonazista teria direito de excluir judeus, ciganos e gays? Segundo o princípio formal exposto, a resposta seria afirmativa, pois o dito partido seria uma associação de racistas. Admitindo judeus etc., ele se desnaturaria.
Mesmo assim, esse partido seria considerado anticonstitucional e discriminatório. Na verdade, o que é justo ou injusto não depende de um cálculo formal, mas de nossa apreciação da situação histórica concreta e do estado de nossas idéias éticas.
É o que acontece também no caso dos escoteiros contra Dale. Eis o dilema. Ser escoteiro é sinônimo de uma compostura moral, ao ponto em que "escoteiro" se tornou metáfora (irônica) de um comportamento excessivamente bondoso. Os escoteiros acham que ser gay não é compatível com essa compostura. De fato, a Corte deve decidir se a orientação sexual de um sujeito compromete ou não suas qualidades morais. Ou seja, sendo homossexual, é possível ser bom, generoso, altruísta, correto, sincero e gentleman?
Depois de anos de atenção da imprensa, segundo os escoteiros, readmitir Dale significaria declarar publicamente que ser gay é compatível com o ideal moral que eles encarnam. Para Dale, recusar sua queixa significaria declarar que a homossexualidade é uma falha moral. A decisão da Corte Suprema mostrará qual é a parte de hipocrisia que permanece atrás das bonitas declarações de tolerância do multiculturalismo.
A Justiça americana reflete provavelmente uma ideologia média, não só americana. Em julho, quando os juízes se pronunciarão, saberemos se hoje, para essa ideologia média, moralidade e homossexualidade são conciliáveis ou não.
Mas o caso levanta ainda uma outra questão. O escotismo pede um certo recalque do desejo sexual. Presume-se que os escoteiros pensem em outra coisa que em sexo. Ora, a história de James Dale atrapalha esse recalque. Ela perturba o silêncio do sexo. Tanto mais que vige um preconceito ridículo segundo o qual quem não é heterossexual e conforme o figurino deve ser especialmente obcecado por sexo. Certamente, Dale não é o primeiro chefe escoteiro homossexual. Mas, pela exposição pública do caso, ele pisca como um letreiro luminoso entre os escoteiros: "Há desejo sexual por aqui!".
Problema para os escoteiros? Sem dúvida. Mas talvez bem-vindo. Pois estaria na hora de nossa cultura aperfeiçoar maneiras de conter o desejo sexual que sejam diferentes do recalque.
Há uma série de situações sociais (família, escola, escritório, Exército e também escotismo) em que, com razão, preferimos que o desejo sexual não oriente nossas ações. Mas, aparentemente, conseguimos escantear o desejo sexual apenas negando sua existência.
A preferência pelo recalque manifesta sempre que o censor é o verdadeiro "tarado", ao ponto em que a exclusão lhe parece ser o único remédio, como no caso dos escoteiros: "Sexo? Que saia daqui quem falou!".
Seria preferível aprender a conviver com o desejo sexual, a reconhecê-lo, sem negá-lo e sem ter de submeter indiscriminadamente nossas vidas a suas exigências e seduções.


E-mail: ccalligari@uol.com.br



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