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CINEMA/ESTRÉIA
"A ESSÊNCIA DA PAIXÃO"
Obra é adaptação de romance de Edith Wharton
Filme expõe jogos de sociedade "sinistra"
FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL
O sábio vive numa casa de lamentações; o tolo, na da alegria.
Assim diz o livro bíblico de Eclesiastes, em passagem pinçada por
Edith Wharton (1862-1937) para
dar título a "The House of Mirth"
-literalmente, a casa da alegria-, levado às telas pelo inglês
Terence Davies, 55.
"Oh, Lord!", deixa escapar Davies, durante entrevista por telefone à Folha, ao saber que o título
do filme, que estréia hoje em São
Paulo, foi vertido para "A Essência da Paixão". O espanto de Davies se explica: a essência do filme,
como a do romance, não é a da
paixão, mas a da hipocrisia de
uma sociedade cujos mais sólidos
pilares são aparência e dinheiro.
Uma hipocrisia que permanece.
Para Davies, a atualidade do romance, escrito em 1905, foi decisiva para que ele quisesse filmá-lo.
"Tudo ainda gira em torno de
quão bonito você é, de quanto dinheiro você tem. Exatamente como na belle époque. Só que hoje,
muito comumente, se você tem
uma boa aparência, pode não ter
dinheiro ou qualquer talento específico. É ainda mais sinistro."
O filme reproduz a trajetória de
Lily Bart (Gillian Anderson) em
sua disputa por um lugar na alta
sociedade nova-iorquina de 1905.
Tendo poucas posses e, para piorar, dívidas de jogo, vive com uma
tia, já que, aos 29, ainda é solteira.
Ela ama Lawrence Selden (Eric
Stoltz), um advogado classe média, e é correspondida, mas abafa
a paixão -que justificaria o título- para tentar fazer do casamento um negócio rentável.
Durante o que pensa ser sua escalada, porém, a senhorita Bart
cai em intrigas armadas por pessoas que lhe são próximas, mas
que não se preocupam senão com
sua própria posição e reputação.
Davies diz que "principalmente
os elementos trágicos" -que não
faltam na trama- atingiram seu
interesse. "Não chegam a ser autobiográficos, mas têm relação
com fatos da minha história."
A declaração de Davies reafirma
o traço mais marcante de seus trabalhos anteriores. Até "A Essência da Paixão", seus filmes foram
quase todos norteados por sua
própria biografia, à exceção de
"Memórias" (1995), baseado em
livro de John Kennedy Toole,
"um trabalho de transição".
O diretor ressalta ainda a qualidade literária de Wharton. "Ela
conta muito bem histórias muito
boas. Na minha opinião, ela é
uma escritora mais acessível
-melhor, mesmo- do que seu
grande contemporâneo, que é
Henry James [1843-1916, autor de
"Retrato de uma Mulher, filmado
por Jane Campion e estrelado por
Nicole Kidman em 96"."
Fidelidade literária
Por admirar a literatura de
Wharton, Terence Davies bate o
pé em um ponto que, para ele, é
"crucial": manter o tom da linguagem usada pela romancista.
"Fui fiel ao texto. Eles falam dessa maneira formal. Se você mudar, tira a sutileza."
Aliás, para ele é "inaceitável",
em adaptações para filmes de
época de qualquer autor, modificar a fala dos personagens.
"O que não gosto em adaptações de outros livros, particularmente de Jane Austen [1775-1817,
autora de "Razão e Sensibilidade", que Ang Lee filmou em 95", e
nem sou fã dela, é que tentam fazer as pessoas modernas. É idiota.
Se você muda o jeito como os personagens se expressam, você não
lida com a tessitura do romance.
Então por que adaptá-lo?"
Se Davies soltaria outros "oh,
Lord!" diante de tropeços das legendas (como o "não me dê o fora", posto na boca de um marido
traído no filme), isso não quer dizer que não tenha alterado a estrutura original do romance.
"Felizmente, foram mudanças
sutis. Você não pode usar tudo.
Num romance, pode-se dizer a
mesma coisa várias vezes e manter o interesse. Num filme fica
chato. É preciso aproveitar o que é
essencial, mas manter a forma,
porque isso é o livro."
A importância do aspecto formal salta no trabalho de Davies.
Para recriar a atmosfera do romance, inspirou-se na pintura de
John Singer Sargent (1856-1925) e
na luz de Vermeer (1632-1675),
"meu pintor favorito, referência
de todos os meus filmes".
Foi perseguindo a forma perfeita que, por acaso, descobriu Gillian Anderson, que surpreende
no papel principal, apagando
qualquer reminiscência da agente
Dana Scully, que a consagrou na
TV. "Recebi uma foto dela e achei
que parecia um retrato de Sargent. Eu nem sabia que ela estava
em "Arquivo X", nunca assisti à série", se apressa em dizer.
Com a mesma rapidez, porém,
Davies elimina a chance de ser rotulado de formalista. "Meus testes
são muito rigorosos. Se eu fosse
até Los Angeles e o teste fosse
ruim, ela não teria o papel. Eles
têm de ser capazes de representar
também", conclui, rindo.
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