São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2001

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CINEMA/ESTRÉIA

"A ESSÊNCIA DA PAIXÃO"

Obra é adaptação de romance de Edith Wharton

Filme expõe jogos de sociedade "sinistra"

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

O sábio vive numa casa de lamentações; o tolo, na da alegria. Assim diz o livro bíblico de Eclesiastes, em passagem pinçada por Edith Wharton (1862-1937) para dar título a "The House of Mirth" -literalmente, a casa da alegria-, levado às telas pelo inglês Terence Davies, 55.
"Oh, Lord!", deixa escapar Davies, durante entrevista por telefone à Folha, ao saber que o título do filme, que estréia hoje em São Paulo, foi vertido para "A Essência da Paixão". O espanto de Davies se explica: a essência do filme, como a do romance, não é a da paixão, mas a da hipocrisia de uma sociedade cujos mais sólidos pilares são aparência e dinheiro.
Uma hipocrisia que permanece. Para Davies, a atualidade do romance, escrito em 1905, foi decisiva para que ele quisesse filmá-lo.
"Tudo ainda gira em torno de quão bonito você é, de quanto dinheiro você tem. Exatamente como na belle époque. Só que hoje, muito comumente, se você tem uma boa aparência, pode não ter dinheiro ou qualquer talento específico. É ainda mais sinistro."
O filme reproduz a trajetória de Lily Bart (Gillian Anderson) em sua disputa por um lugar na alta sociedade nova-iorquina de 1905. Tendo poucas posses e, para piorar, dívidas de jogo, vive com uma tia, já que, aos 29, ainda é solteira.
Ela ama Lawrence Selden (Eric Stoltz), um advogado classe média, e é correspondida, mas abafa a paixão -que justificaria o título- para tentar fazer do casamento um negócio rentável.
Durante o que pensa ser sua escalada, porém, a senhorita Bart cai em intrigas armadas por pessoas que lhe são próximas, mas que não se preocupam senão com sua própria posição e reputação.
Davies diz que "principalmente os elementos trágicos" -que não faltam na trama- atingiram seu interesse. "Não chegam a ser autobiográficos, mas têm relação com fatos da minha história."
A declaração de Davies reafirma o traço mais marcante de seus trabalhos anteriores. Até "A Essência da Paixão", seus filmes foram quase todos norteados por sua própria biografia, à exceção de "Memórias" (1995), baseado em livro de John Kennedy Toole, "um trabalho de transição".
O diretor ressalta ainda a qualidade literária de Wharton. "Ela conta muito bem histórias muito boas. Na minha opinião, ela é uma escritora mais acessível -melhor, mesmo- do que seu grande contemporâneo, que é Henry James [1843-1916, autor de "Retrato de uma Mulher, filmado por Jane Campion e estrelado por Nicole Kidman em 96"."

Fidelidade literária
Por admirar a literatura de Wharton, Terence Davies bate o pé em um ponto que, para ele, é "crucial": manter o tom da linguagem usada pela romancista.
"Fui fiel ao texto. Eles falam dessa maneira formal. Se você mudar, tira a sutileza."
Aliás, para ele é "inaceitável", em adaptações para filmes de época de qualquer autor, modificar a fala dos personagens.
"O que não gosto em adaptações de outros livros, particularmente de Jane Austen [1775-1817, autora de "Razão e Sensibilidade", que Ang Lee filmou em 95", e nem sou fã dela, é que tentam fazer as pessoas modernas. É idiota. Se você muda o jeito como os personagens se expressam, você não lida com a tessitura do romance. Então por que adaptá-lo?"
Se Davies soltaria outros "oh, Lord!" diante de tropeços das legendas (como o "não me dê o fora", posto na boca de um marido traído no filme), isso não quer dizer que não tenha alterado a estrutura original do romance.
"Felizmente, foram mudanças sutis. Você não pode usar tudo. Num romance, pode-se dizer a mesma coisa várias vezes e manter o interesse. Num filme fica chato. É preciso aproveitar o que é essencial, mas manter a forma, porque isso é o livro."
A importância do aspecto formal salta no trabalho de Davies. Para recriar a atmosfera do romance, inspirou-se na pintura de John Singer Sargent (1856-1925) e na luz de Vermeer (1632-1675), "meu pintor favorito, referência de todos os meus filmes".
Foi perseguindo a forma perfeita que, por acaso, descobriu Gillian Anderson, que surpreende no papel principal, apagando qualquer reminiscência da agente Dana Scully, que a consagrou na TV. "Recebi uma foto dela e achei que parecia um retrato de Sargent. Eu nem sabia que ela estava em "Arquivo X", nunca assisti à série", se apressa em dizer.
Com a mesma rapidez, porém, Davies elimina a chance de ser rotulado de formalista. "Meus testes são muito rigorosos. Se eu fosse até Los Angeles e o teste fosse ruim, ela não teria o papel. Eles têm de ser capazes de representar também", conclui, rindo.


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