São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

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ANÁLISE

Do espaço corporativo a um território de liberdade

MARÍA LAURA SILVEIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Preocupação antiga de Milton Santos, a reorganização do território brasileiro no período da globalização foi objeto de numerosas pesquisas e publicações, dentre elas a obra "O Brasil - Território e Sociedade no Início do Século XXI".
Nesse livro, buscamos mostrar como a fluidez do território brasileiro, alcançada graças à construção de redes materiais e imateriais, permite a difusão das atividades econômicas modernas e das novas formas de cooperação.
Criam-se, desse modo, topologias de firmas que cobrem vastas porções do país e unem pontos apropriados à lógica dessas mesmas empresas. As infra-estruturas que possibilitam esse relacionamento são construídas com recursos públicos, mas seu uso privado nos autoriza a falar de uma privatização do território.
O espaço corporativo deriva de tal mecanismo, pois assistimos a uma utilização privilegiada dos bens públicos e a uma utilização hierárquica dos bens privados. Quando as corporações encorajam, segundo várias formas de ação, a construção dos sistemas de engenharia de que necessitam e quando os governos decidem realizar tais obras, o processo de produção do espaço corporativo se fortalece.
A consequência é a instabilidade do território, alimentada pelas próprias turbulências do chamado mercado global.
Essa instabilidade marca as relações da empresa com o seu entorno, isto é, com outras empresas, com as instituições e com o próprio território, já que existe uma contínua necessidade de readaptação ao mercado. É a produção de uma permanente desordem nos lugares, cuja manifestação mais visível é a ingovernabilidade da economia e do território.
Essa é uma grande inquietação de Milton Santos. São os lugares que evidenciam que as receitas, de cunho macroeconômico e reproduzidas de forma quase idêntica, aprofundam as crises por não levar em conta o espaço banal, isto é, o espaço de todas as empresas, de todas as instituições, de todos os homens, todo o espaço. Quem não reage favoravelmente à aplicação de tal receituário é declarado inviável.
Como o território usado diferentemente pela sociedade é uma totalidade dinâmica, permite uma visão unificada dos problemas sociais, econômicos e políticos e, por isso, deveria ser pensado como um ator da política.
Todavia, o problema central é que a atual arquitetura política do país, diz-nos Milton, trabalha com uma idéia de território que é apenas um conjunto de formas (limites, fronteiras) e não de formas-conteúdo (as reais necessidades da população nos lugares).
As contradições entre as demandas dos lugares e das grandes corporações ganham sua mais clara manifestação nas crises territoriais que revelam as crises da economia, da política, da sociedade. Regiões e cidades disputam a alocação de capitais numa verdadeira guerra de lugares. É a esquizofrenia do território, pois as regiões almejam uma modernização que, ao chegar, aumenta sua exclusão e alienação.
Qual é, então, a voz do lugar no Brasil globalizado? Santos formula essa questão, contribuindo para o debate nacional. A atual forma de representatividade política não reflete os problemas dos lugares na globalização, que apontam a falta de comando político do seu trabalho e das condições da vida, problemas que, tantas vezes, vão além de municípios e Estados.
Daí sua proposta de construir uma federação de lugares, resultado da compartimentação do território em áreas de identidade, legitimadas pelas próprias condições de existência. Tratar-se-ia de uma regionalização do cotidiano, da emergência de um quarto nível político-territorial, de uma verdadeira federação lugarizada. Por isso a geografia de Milton Santos é uma teoria do futuro, geografia da vida que busca um caminho para a construção de um território brasileiro de justiça e de liberdade.


María Laura Silveira é professora doutora do Departamento de Geografia da USP e pesquisadora do CNPq, além de co-autora do livro "O Brasil - Território e Sociedade no Início do Século XXI" (ed. Record, 2001)



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