São Paulo, sábado, 04 de maio de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LITERATURA

Segunda parte da autobiografia do escritor sul-africano radicado na Inglaterra sai em julho nos EUA

Coetzee revela sentimento de inadequação

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

J.M. Coetzee entrou como intruso na festa das letras inglesas. Originário de uma das ex-colônias, a África do Sul, e descendente de uma família de não intelectuais, formou-se em matemática e trabalhou um tempo na IBM. E, a julgarmos pela segunda parte de sua autobiografia, "Youth: Scenes from Provincial Life II" (Juventude: Cenas de uma Vida Provinciana II), nutriu sérias dúvidas sobre a possível vida de escritor.
Quarenta anos após ter desembarcado na Inglaterra, sua insegurança inicial serve de alívio a aspirantes à carreira artística. Afinal, Coetzee se tornou o primeiro escritor a ganhar duas vezes o Booker Prize, com "Life and Times of Michael K" e "Desonra" (o segundo autor seria Peter Carey, no ano passado). Também é sempre lembrado para o Nobel de Literatura.
Vive hoje recluso e não dá entrevistas. Instado a nos abrir uma exceção, respondeu, por meio de sua agente, que tudo o que o leitor quiser saber dele está em seus livros, especialmente nos dois volumes de sua autobiografia.
Vejamos. O relato, no presente do indicativo e em terceira pessoa, acompanha a vida de John, alter ego do autor, dos 18 aos 24 anos. O sentimento de inadequação percorre a obra. Insatisfeito com o passado africânder de sua família e com a África do Sul, John vai para a Inglaterra. Influenciado por Ezra Pound e T.S. Eliot, está determinado a se tornar um poeta e a "enfrentar tudo", até o exílio.
Na "swinging London" dos anos 60, as coisas não são fáceis. Obrigado pelas leis de imigração a aceitar um emprego que despreza, na IBM, John não tem amigos. Seus relacionamentos amorosos tendem ao malogro. Crê que pode ser homossexual, mas a experiência também fracassa.
John prepara tese sobre o escritor Ford Madox Ford, mas descobre que o autor pouco acrescenta. Nesse sentido, é crucial sua descoberta de um romance de Beckett, "Watt", em que "não há embate nem conflito, apenas o fluxo de uma voz contando uma história, um fluxo continuamente confrontado por dúvidas e escrúpulos, seu ritmo ajustado com exatidão ao da própria mente."
Como "Watt", "Youth" se ocupa da descrição de uma consciência. As figuras do passado de John vêm e vão, sem que o autor se prenda a elas. A função dos incidentes e dos relacionamentos expostos é abrir terreno para um julgamento moral e existencial desse rapaz hamletianamente cindido, inteligente, mas irresoluto, sensível, mas egoísta, ávido por experiências (da "mais nobre à mais degradada"), mas receoso.
O exílio a que o autor se refere ganha um sentido maior do que a mera expatriação. John se sente tão banido da África do Sul quanto de sua almejada condição de artista. Se não se encaixa no destino burguês que a IBM lhe proporcionaria, também não consegue se ver como poeta. Quer ter experiências que lhe possibilitem perscrutar a alma, mas sente medo e, quando age de modo egoísta como um verdadeiro artista, remorso. Acossado pela culpa e pelo sentimento de permanente inadequação, John ensaia, acima de tudo, o exílio de si mesmo.
A obra aspira à condição de um "Künstlerroman", como "Um Retrato do Artista Quando Jovem", de Joyce, mas com um final bem mais melancólico. Na prosa distanciada e lírica de Coetzee, a redenção poucas vezes é possível.
"Youth" sairá nos EUA em julho deste ano. "Boyhood" ("Infância"), primeira parte desta autobiografia, foi publicada em 1997. Dele, a Companhia das Letras está lançando este mês a novela "A Vida dos Animais".


Youth: Scenes from Provincial Life II    
Autor: J.M. Coetzee
Editora: Viking Penguin
Quanto: US$ 22,95 ou R$ 54,85
Onde encomendar: www.amazon.com




Texto Anterior: Trechos
Próximo Texto: José Simão: O colunista volta a escrever no dia 17 de maio
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.