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CARLOS HEITOR CONY
Tempo de não ter tempo
Um dos enigmas mais intrigantes é o tempo gasto pelas autoridades que nos guiam e regem
DOS ENIGMAS de que a vida é
cheia, um dos mais intrigantes é o tempo gasto pelas autoridades que nos guiam e regem. O
mistério vem de longe: antigamente,
havia a expressão "priscas eras",
pois o mistério vem de priscas eras e
continua sem ser decifrado.
O imperador Tibério isolou-se em
Capri e de lá governou o imenso império, que ele tornara mais vasto,
chegando às margens do Danúbio,
onde, por sinal, morreria Marco Aurélio na tentativa de manter fronteiras tão longínquas.
Tibério passava o dia encerrado
numa sala matando moscas -mas
quando acabava de matar moscas,
dava uma ordem que prontamente
ampliava o poderio de Roma e o
bem-estar de seus cidadãos. Cansado de dar ordens, ia descansar, ou
caçando moscas, ou se divertindo
com rapazes em sua piscina. Desprezava a vida social, não perdia
tempo com ela.
A agenda de um presidente da República, dos seus ministros, dos governadores e até dos prefeitos é espantosa. O que eles perdem de tempo com os compromissos do cargo -
que, no fundo, são compromissos
sociais, podem parecer inadiáveis,
mas não podem ser considerados
um trabalho executivo, dedicado ao
funcionamento da máquina administrativa...
Não dá para entender que um ministro amanheça em Curitiba, tomando café da manhã com empresários locais, almoce em Cuiabá com
fazendeiros da região, grave uma entrevista para o "Fantástico" em Maceió, compareça na parte da tarde à
missa de sétimo dia da sogra de um
outro ministro, em Brasília, dê o ar
de sua graça num coquetel às 19h em
Recife e não perca o jantar de confraternização, em São Paulo, da bancada de seu partido, que está em articulações pra a escolha do novo líder do Senado.
Casamentos, batizados, missas de
sétimo dia, cafés da manhã, almoço,
coquetéis, palestras (ativas ou passivas, de acordo com aquilo que o ministro fale ou ouça), jantares, visitas
a colegas do ministério enfartados
no Instituto do Coração, isso sem falar no necessário lazer, porque ninguém é de ferro: estréias cinematográficas, teatrais, simpósios, colóquios e seminários.
Uma pauta desse calibre, distribuída nas 24 horas do dia, inspira
compaixão e perplexidade. Compaixão pela rudeza dos compromissos,
deslocamentos terrestres, marítimos e aéreos, levando consigo um
assessor ou um segurança que está
encarregado de não esquecer a escova de dente, o remédio para azia, o
band-aid para proteger o calo do pé
esquerdo.
Perplexidade porque, embora o
sujeito seja especialista de coisa alguma, a partir do momento em que
toma posse de um ministério (Agricultura, Saúde, Cultura, seja qual
for), ele passa a ser um técnico, um
entendido: passa a saber as cifras,
lançar prognósticos e até ameaçar
soluções.
Outro dia, acusaram formalmente
o presidente de estar chutando cifras e inventando resultados. A cara-de-pau é uma de suas armas mais
convincentes. O truque é simples,
para não dizer simplório.
Se ele afirmar que o desemprego
caiu 3,5%, que foram distribuídas 56
mil cestas básicas e assentadas 12
mil famílias em algum lugar do território nacional, a contestação, além
de improvável, é demorada. Quando
vem, já está superada pela divulgação de novos índices.
E como seu tempo é pouco, são
necessários mais quatro anos para
ter tempo de não ter tempo para nada. É o homem mais ocupado do
país. E como ninguém é de ferro, há
que haver brechas na agenda para
relaxar das agruras do cargo, ver um
filme ou assistir a um show do Zeca
Pagodinho.
Houve um imperador na velha
China, de não me lembro qual dinastia, que passava seus dias soltando
papagaios de seda que ele mesmo
confeccionava. Ventando ou não
ventando, ele empinava as suas pipas e não podia ser interrompido.
Volta e meia, algum assessor levava
um problema que precisava de rápida solução.
Para não perder tempo, o imperador tinha duas respostas prontas:
sim e não. Nem ouvia a exposição do
assunto: dizia sim ou não alternadamente. Perdia uma safra de arroz
com a mesma insensibilidade com
que ganhava um carregamento de
chá proveniente de remotas regiões
da Índia.
Passou à história como um imperador sábio e magnânimo. Houve
uma revolta de camponeses que seriam condenados à morte. Ele havia
dado um sim para um problema anterior, era hora de dizer não, fosse
para o que fosse. Foram salvas 354
vidas.
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