São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2007

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CARLOS HEITOR CONY

Tempo de não ter tempo

Um dos enigmas mais intrigantes é o tempo gasto pelas autoridades que nos guiam e regem

DOS ENIGMAS de que a vida é cheia, um dos mais intrigantes é o tempo gasto pelas autoridades que nos guiam e regem. O mistério vem de longe: antigamente, havia a expressão "priscas eras", pois o mistério vem de priscas eras e continua sem ser decifrado.
O imperador Tibério isolou-se em Capri e de lá governou o imenso império, que ele tornara mais vasto, chegando às margens do Danúbio, onde, por sinal, morreria Marco Aurélio na tentativa de manter fronteiras tão longínquas.
Tibério passava o dia encerrado numa sala matando moscas -mas quando acabava de matar moscas, dava uma ordem que prontamente ampliava o poderio de Roma e o bem-estar de seus cidadãos. Cansado de dar ordens, ia descansar, ou caçando moscas, ou se divertindo com rapazes em sua piscina. Desprezava a vida social, não perdia tempo com ela.
A agenda de um presidente da República, dos seus ministros, dos governadores e até dos prefeitos é espantosa. O que eles perdem de tempo com os compromissos do cargo - que, no fundo, são compromissos sociais, podem parecer inadiáveis, mas não podem ser considerados um trabalho executivo, dedicado ao funcionamento da máquina administrativa...
Não dá para entender que um ministro amanheça em Curitiba, tomando café da manhã com empresários locais, almoce em Cuiabá com fazendeiros da região, grave uma entrevista para o "Fantástico" em Maceió, compareça na parte da tarde à missa de sétimo dia da sogra de um outro ministro, em Brasília, dê o ar de sua graça num coquetel às 19h em Recife e não perca o jantar de confraternização, em São Paulo, da bancada de seu partido, que está em articulações pra a escolha do novo líder do Senado.
Casamentos, batizados, missas de sétimo dia, cafés da manhã, almoço, coquetéis, palestras (ativas ou passivas, de acordo com aquilo que o ministro fale ou ouça), jantares, visitas a colegas do ministério enfartados no Instituto do Coração, isso sem falar no necessário lazer, porque ninguém é de ferro: estréias cinematográficas, teatrais, simpósios, colóquios e seminários.
Uma pauta desse calibre, distribuída nas 24 horas do dia, inspira compaixão e perplexidade. Compaixão pela rudeza dos compromissos, deslocamentos terrestres, marítimos e aéreos, levando consigo um assessor ou um segurança que está encarregado de não esquecer a escova de dente, o remédio para azia, o band-aid para proteger o calo do pé esquerdo.
Perplexidade porque, embora o sujeito seja especialista de coisa alguma, a partir do momento em que toma posse de um ministério (Agricultura, Saúde, Cultura, seja qual for), ele passa a ser um técnico, um entendido: passa a saber as cifras, lançar prognósticos e até ameaçar soluções.
Outro dia, acusaram formalmente o presidente de estar chutando cifras e inventando resultados. A cara-de-pau é uma de suas armas mais convincentes. O truque é simples, para não dizer simplório.
Se ele afirmar que o desemprego caiu 3,5%, que foram distribuídas 56 mil cestas básicas e assentadas 12 mil famílias em algum lugar do território nacional, a contestação, além de improvável, é demorada. Quando vem, já está superada pela divulgação de novos índices.
E como seu tempo é pouco, são necessários mais quatro anos para ter tempo de não ter tempo para nada. É o homem mais ocupado do país. E como ninguém é de ferro, há que haver brechas na agenda para relaxar das agruras do cargo, ver um filme ou assistir a um show do Zeca Pagodinho.
Houve um imperador na velha China, de não me lembro qual dinastia, que passava seus dias soltando papagaios de seda que ele mesmo confeccionava. Ventando ou não ventando, ele empinava as suas pipas e não podia ser interrompido. Volta e meia, algum assessor levava um problema que precisava de rápida solução.
Para não perder tempo, o imperador tinha duas respostas prontas: sim e não. Nem ouvia a exposição do assunto: dizia sim ou não alternadamente. Perdia uma safra de arroz com a mesma insensibilidade com que ganhava um carregamento de chá proveniente de remotas regiões da Índia.
Passou à história como um imperador sábio e magnânimo. Houve uma revolta de camponeses que seriam condenados à morte. Ele havia dado um sim para um problema anterior, era hora de dizer não, fosse para o que fosse. Foram salvas 354 vidas.


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