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FERREIRA GULLAR
O pecúlio
Aquele era um dinheiro que podia esbanjar à vontade e, melhor, ajudando os outros
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DIONÍSIO, APOSENTADO do Ministério da Saúde, trabalhara
muito a vida inteira, também
como advogado que era, e agora vivia folgadamente, garantido além do
mais pela pensão deixada pela falecida Dorotéia, mãe de sua única filha.
Vivia tranqüilo, se é que alguém
pode viver tranqüilo no Rio de Janeiro de hoje, com assaltos e tiroteios por quase toda a parte. Mas,
parece, tinha pé-quente, pois era o
único de seus muitos amigos que
não fora atingido, de um modo ou de
outro, pela criminalidade. E, como
se não bastasse tanta sorte, ainda
veio aquele telefonema que parecia
enviado do céu.
-É da casa do sr. Dionísio Cavalcanti dos Santos?
-Sim, senhor.
-Poderia falar com ele?
-Já está falando.
-O senhor é aposentado do Ministério da Saúde. Não é?
-Sou, sim, senhor. Por quê?
-Sua residência é rua Apolônio
Silva, 340, apartamento 301?
-Isso mesmo.
-Queria informar-lhe que o senhor tem um resto de pecúlio a receber, mas preciso conferir alguns dados...
-Mas quanto tenho a receber?
-Sessenta e nove mil e oitocentos
reais. Mas, veja bem, o tempo está se
esgotando. Se o senhor não se apressar, vai perder o dinheiro.
Dionísio exultou, mas se conteve.
-Pode deixar que eu me apresso.
Passou ao sujeito as informações
que ele pediu e, no final, anotou o
número de um telefone e o nome da
pessoa com quem deveria falar para
receber o pecúlio.
-Não deixe de ligar logo, advertiu
o homem antes de desligar. Não é todo dia que pinta uma grana como essa, não é verdade?
-Pode deixar que eu ligo. O interesse é meu.
Mas era tal a sua euforia que, em
vez de ligar para o telefone que o homem lhe dera, ligou para o neto, cujo
carro, de tão velho, mal conseguia
andar.
-Tonho, vou lhe dar um carro de
presente!
-Vô, não me diga! Um carro zero?
-Zero, não, mas um carro bom,
para você se livrar dessa lata velha.
-Vô, você não existe! Mas o que
aconteceu? Ganhou na loteca ou
descobriu uma mina de ouro?
-O pecúlio, meu neto, o pecúlio!
Trata de ver o carro que você vai
querer.
-Vejo, sim, vô! E é pra já!
Dionísio ficou andando pela casa,
excitado. Aquele era um dinheiro
inesperado, que podia esbanjar à
vontade e, o que lhe parecia melhor,
ajudando os outros.
Lembrou então do Alfredão, amigo do peito, que se aposentara da Petrobras e decidira arrendar um restaurante em sociedade com o cunhado. Seis meses depois, estavam
falidos.
Dionísio sabia que não poderia cobrir os prejuízos do amigo, mas não
custava nada oferecer-lhe um empréstimo para aliviar a situação.
Foi o que fez para a alegria de Alfredão, que ficou de fazer umas contas para depois lhe dizer de quanto ia
precisar.
Toda boa notícia se espalha rápido
e, graças a isso, Zildinha, sua sobrinha, telefonou-lhe pedindo uma
ajuda: seu sonho era abrir uma loja
de artesanato.
-Claro que ajudo, garantiu Dionísio.
Os R$ 69.800 já estavam quase inteiramente comprometidos quando
ele decidiu ligar para o telefone que
anotara.
Discou, e uma gravação da telefônica informou que era impossível
completar a ligação, que tentasse
outra vez.
Tentou, e deu no mesmo. Deixou
passar mais de uma hora e nada conseguiu. Começou a estranhar e, após
a décima tentativa, ligou para a empresa telefônica a fim de conferir se
o número estava certo.
-Não existe número de telefone
com dez algarismos, foi a resposta. O
senhor anotou errado.
Decidiu-se informar-se com o Ministério da Saúde, setor de pecúlios.
-Meu senhor, disse-lhe a funcionária, há por aí uma quadrilha de espertalhões que inventou essa história de pecúlio atrasado.
Dizem ao aposentado que ele tem
uma alta grana a receber, cobram
uma taxa para viabilizar o recebimento e depois somem.
Dionísio caiu em si. Agora ia ter
que dizer a Tonho, Alfredão e Zildinha que o sonho acabara.
-Mas vô, como foi cair nessa? Por
que achou que o cara estava falando
a verdade?
-Não duvidei um só minuto. É
que, no fundo, a gente está sempre
achando que tem um pecúlio a receber.
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