São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FERREIRA GULLAR

O pecúlio


Aquele era um dinheiro que podia esbanjar à vontade e, melhor, ajudando os outros

DIONÍSIO, APOSENTADO do Ministério da Saúde, trabalhara muito a vida inteira, também como advogado que era, e agora vivia folgadamente, garantido além do mais pela pensão deixada pela falecida Dorotéia, mãe de sua única filha.
Vivia tranqüilo, se é que alguém pode viver tranqüilo no Rio de Janeiro de hoje, com assaltos e tiroteios por quase toda a parte. Mas, parece, tinha pé-quente, pois era o único de seus muitos amigos que não fora atingido, de um modo ou de outro, pela criminalidade. E, como se não bastasse tanta sorte, ainda veio aquele telefonema que parecia enviado do céu.
-É da casa do sr. Dionísio Cavalcanti dos Santos?
-Sim, senhor.
-Poderia falar com ele?
-Já está falando.
-O senhor é aposentado do Ministério da Saúde. Não é?
-Sou, sim, senhor. Por quê?
-Sua residência é rua Apolônio Silva, 340, apartamento 301?
-Isso mesmo.
-Queria informar-lhe que o senhor tem um resto de pecúlio a receber, mas preciso conferir alguns dados...
-Mas quanto tenho a receber?
-Sessenta e nove mil e oitocentos reais. Mas, veja bem, o tempo está se esgotando. Se o senhor não se apressar, vai perder o dinheiro.
Dionísio exultou, mas se conteve.
-Pode deixar que eu me apresso.
Passou ao sujeito as informações que ele pediu e, no final, anotou o número de um telefone e o nome da pessoa com quem deveria falar para receber o pecúlio.
-Não deixe de ligar logo, advertiu o homem antes de desligar. Não é todo dia que pinta uma grana como essa, não é verdade?
-Pode deixar que eu ligo. O interesse é meu.
Mas era tal a sua euforia que, em vez de ligar para o telefone que o homem lhe dera, ligou para o neto, cujo carro, de tão velho, mal conseguia andar.
-Tonho, vou lhe dar um carro de presente!
-Vô, não me diga! Um carro zero?
-Zero, não, mas um carro bom, para você se livrar dessa lata velha.
-Vô, você não existe! Mas o que aconteceu? Ganhou na loteca ou descobriu uma mina de ouro?
-O pecúlio, meu neto, o pecúlio! Trata de ver o carro que você vai querer.
-Vejo, sim, vô! E é pra já!
Dionísio ficou andando pela casa, excitado. Aquele era um dinheiro inesperado, que podia esbanjar à vontade e, o que lhe parecia melhor, ajudando os outros.
Lembrou então do Alfredão, amigo do peito, que se aposentara da Petrobras e decidira arrendar um restaurante em sociedade com o cunhado. Seis meses depois, estavam falidos.
Dionísio sabia que não poderia cobrir os prejuízos do amigo, mas não custava nada oferecer-lhe um empréstimo para aliviar a situação.
Foi o que fez para a alegria de Alfredão, que ficou de fazer umas contas para depois lhe dizer de quanto ia precisar.
Toda boa notícia se espalha rápido e, graças a isso, Zildinha, sua sobrinha, telefonou-lhe pedindo uma ajuda: seu sonho era abrir uma loja de artesanato.
-Claro que ajudo, garantiu Dionísio.
Os R$ 69.800 já estavam quase inteiramente comprometidos quando ele decidiu ligar para o telefone que anotara.
Discou, e uma gravação da telefônica informou que era impossível completar a ligação, que tentasse outra vez.
Tentou, e deu no mesmo. Deixou passar mais de uma hora e nada conseguiu. Começou a estranhar e, após a décima tentativa, ligou para a empresa telefônica a fim de conferir se o número estava certo.
-Não existe número de telefone com dez algarismos, foi a resposta. O senhor anotou errado.
Decidiu-se informar-se com o Ministério da Saúde, setor de pecúlios.
-Meu senhor, disse-lhe a funcionária, há por aí uma quadrilha de espertalhões que inventou essa história de pecúlio atrasado.
Dizem ao aposentado que ele tem uma alta grana a receber, cobram uma taxa para viabilizar o recebimento e depois somem.
Dionísio caiu em si. Agora ia ter que dizer a Tonho, Alfredão e Zildinha que o sonho acabara.
-Mas vô, como foi cair nessa? Por que achou que o cara estava falando a verdade?
-Não duvidei um só minuto. É que, no fundo, a gente está sempre achando que tem um pecúlio a receber.


Texto Anterior: Novelas da semana
Próximo Texto: Televisão: Fórum discute mercado de produção
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.