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São Paulo, sexta-feira, 04 de julho de 2003

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CARLOS HEITOR CONY

O Grande Satã e a Besta do Apocalipse

O Grande Satã entrou na mídia, substituindo com vantagem o Big Brother, criado por George Orwell, e ambos substituindo a Besta do Apocalipse, criada segundo alguns pelo apóstolo João na ilha de Patmos. Deles se originam todas as desgraças particulares e coletivas, estão em toda a parte, são omnímodos na solércia, sem eles o mundo seria outro, embora diferente do outro mundo que tememos.
Para o pessoal do Islã, com seus respeitáveis motivos, o Grande Satã seria George W. Bush, cujo prazo de validade ainda não expirou. Para a esquerda mais ortodoxa, seriam os Estados Unidos em geral, com seu estilo de vida, sua hegemonia militar e seu poderio econômico. Ao contrário do Big Brother, que é criação recente, o Grande Satã é medieval, pai das trevas da idade que alguns consideram das Trevas.
Foram antecipados pela Besta do Apocalipse, ainda no primeiro século de nossa era, e a ela foram atribuídas a fome, a peste e a guerra. O autor a descreveu em suas múltiplas peripécias, mas foi parcimonioso em sua identificação, limitando-se a informar: "E o número da Besta era 666". E a humanidade, que às vezes funciona como uma besta, de acordo com as circunstâncias de tempo e modo, identificou-a como Nero, no tempo das perseguições aos cristãos.
Usando um método complicado, descobriram que a soma das letras de seu verdadeiro nome (Lúcio Domício Enobardo) formava o número 666. Sou ruim nesta e em outras matérias e até hoje não consegui entender o processo cabalístico que transforma letras de um alfabeto qualquer em números da aritmética, que ainda é uma das pouquíssimas coisas que são realmente universais.
Depois de Nero, descobriram que Átila, o flagelo de Deus, cujo cavalo por onde passava não deixava crescer grama, também foi considerado a Besta do Apocalipse. E a dinastia continuou, eu estava no seminário e, para pasmo de seus alunos, padre Cipriano escreveu no quadro negro o nome "Hitler" e provou, por A mais B, que a besta prevista pelo apóstolo João era o ditador nazista. Foi, aliás, a primeira vez que fui apresentado a um logaritmo e, como pouco me aprimorei nas matemáticas, até hoje acho que logaritmo deve ser um dos codinomes da própria Besta.
Os árabes têm fama de bons em números e deve haver algum ou alguns, nas cavernas do Afeganistão ou nas ruínas do Iraque, estudando o nome de Bush para obter o 666 que espantará o mundo ocidental-cristão.
Durante a Guerra Fria, o negócio ficou mais complicado, a CIA dos Estados Unidos e a KGB da União Soviética dividiram fraternalmente aquela soma e cada qual ficou com 333 -que era o bastante para neutralizar as artimanhas de uma e de outra besta.
Com o fim de uma delas, a esquerda como um todo juntou as duas metades e formou novamente o 666, jogando-o em cima de Bush e dos Estados Unidos, que, diga-se de passagem, em alguns momentos parecem promover a peste, a fome e a guerra para aqueles que não aceitam a sua hegemonia.
Como é difícil transformar o nome de George W. Bush em números para formar a soma apocalíptica e com a desmoralização do Big Brother, que virou programa de TV, o jeito foi aceitar o Grande Satã e, mais uma vez, os contrários se aliaram taticamente no tabuleiro, os fundamentalistas islâmicos, que não transam com mulheres menstruadas, juntaram-se aos esclarecidos esquerdistas que não cultivam essa e outras superstições.
Bem, durante a Guerra do Iraque, antes e depois dela, também me juntei aos fundamentalistas do Islã e aos esquerdistas de todos os tamanhos e feitios, mas sem apelar para a história ou para a lenda. Não temo a Besta do Apocalipse, seja qual for a sua mais recente encarnação, não temo o Grande Satã (sou devoto de santo Antônio e de são José) e temo muito menos o Big Brother, cujo programa na TV nunca me dei ao respeito de assistir.
Sendo assim, não culpo os Estados Unidos por todas as calamidades, somente por algumas e bastantes. E até que a imagem da Grande Besta não é de todo imprópria se aplicada ao arsenal nuclear que o Pentágono detém e amplia, sem nenhuma fiscalização da ONU. As bestas anteriores, de Nero a Hitler, dispunham de poder e força, mas Nero se limitou a pendurar cristãos ensopados de petróleo nos postes da Domus Aurea, botou fogo neles para iluminar suas festas. Hitler fez mais -e como!-, mas o estrago não chegou a dimensões apocalípticas. Sobrevivemos aos campos de concentração, às câmaras de gás e aos fornos crematórios.
Mas podemos, a qualquer momento, ir para os ares ou para debaixo da terra de um momento para outro, inclusive por um defeito de fabricação ou operação do arsenal norte-americano. Um amigo me provou que há 666 armas diferentes capazes de destruir a civilização milhares de vezes. E, como não apelou para os logaritmos, como o padre Cipriano, mesmo sem entender direito o seu raciocínio, se não lhe dei fé, dei-lhe o devido crédito.


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