|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
O Grande Satã e a Besta do Apocalipse
O Grande Satã entrou na mídia,
substituindo com vantagem o
Big Brother, criado por George
Orwell, e ambos substituindo a
Besta do Apocalipse, criada segundo alguns pelo apóstolo João
na ilha de Patmos. Deles se originam todas as desgraças particulares e coletivas, estão em toda a
parte, são omnímodos na solércia, sem eles o mundo seria outro,
embora diferente do outro mundo que tememos.
Para o pessoal do Islã, com seus
respeitáveis motivos, o Grande
Satã seria George W. Bush, cujo
prazo de validade ainda não expirou. Para a esquerda mais ortodoxa, seriam os Estados Unidos
em geral, com seu estilo de vida,
sua hegemonia militar e seu poderio econômico. Ao contrário do
Big Brother, que é criação recente,
o Grande Satã é medieval, pai das
trevas da idade que alguns consideram das Trevas.
Foram antecipados pela Besta
do Apocalipse, ainda no primeiro
século de nossa era, e a ela foram
atribuídas a fome, a peste e a
guerra. O autor a descreveu em
suas múltiplas peripécias, mas foi
parcimonioso em sua identificação, limitando-se a informar: "E o
número da Besta era 666". E a humanidade, que às vezes funciona
como uma besta, de acordo com
as circunstâncias de tempo e modo, identificou-a como Nero, no
tempo das perseguições aos cristãos.
Usando um método complicado, descobriram que a soma das
letras de seu verdadeiro nome
(Lúcio Domício Enobardo) formava o número 666. Sou ruim
nesta e em outras matérias e até
hoje não consegui entender o processo cabalístico que transforma
letras de um alfabeto qualquer
em números da aritmética, que
ainda é uma das pouquíssimas
coisas que são realmente universais.
Depois de Nero, descobriram
que Átila, o flagelo de Deus, cujo
cavalo por onde passava não deixava crescer grama, também foi
considerado a Besta do Apocalipse. E a dinastia continuou, eu estava no seminário e, para pasmo
de seus alunos, padre Cipriano escreveu no quadro negro o nome
"Hitler" e provou, por A mais B,
que a besta prevista pelo apóstolo
João era o ditador nazista. Foi,
aliás, a primeira vez que fui apresentado a um logaritmo e, como
pouco me aprimorei nas matemáticas, até hoje acho que logaritmo deve ser um dos codinomes
da própria Besta.
Os árabes têm fama de bons em
números e deve haver algum ou
alguns, nas cavernas do Afeganistão ou nas ruínas do Iraque, estudando o nome de Bush para obter
o 666 que espantará o mundo ocidental-cristão.
Durante a Guerra Fria, o negócio ficou mais complicado, a CIA
dos Estados Unidos e a KGB da
União Soviética dividiram fraternalmente aquela soma e cada
qual ficou com 333 -que era o
bastante para neutralizar as artimanhas de uma e de outra besta.
Com o fim de uma delas, a esquerda como um todo juntou as
duas metades e formou novamente o 666, jogando-o em cima
de Bush e dos Estados Unidos,
que, diga-se de passagem, em alguns momentos parecem promover a peste, a fome e a guerra para
aqueles que não aceitam a sua
hegemonia.
Como é difícil transformar o nome de George W. Bush em números para formar a soma apocalíptica e com a desmoralização do
Big Brother, que virou programa
de TV, o jeito foi aceitar o Grande
Satã e, mais uma vez, os contrários se aliaram taticamente no tabuleiro, os fundamentalistas islâmicos, que não transam com mulheres menstruadas, juntaram-se
aos esclarecidos esquerdistas que
não cultivam essa e outras superstições.
Bem, durante a Guerra do Iraque, antes e depois dela, também
me juntei aos fundamentalistas
do Islã e aos esquerdistas de todos
os tamanhos e feitios, mas sem
apelar para a história ou para a
lenda. Não temo a Besta do Apocalipse, seja qual for a sua mais
recente encarnação, não temo o
Grande Satã (sou devoto de santo
Antônio e de são José) e temo
muito menos o Big Brother, cujo
programa na TV nunca me dei ao
respeito de assistir.
Sendo assim, não culpo os Estados Unidos por todas as calamidades, somente por algumas e
bastantes. E até que a imagem da
Grande Besta não é de todo imprópria se aplicada ao arsenal
nuclear que o Pentágono detém e
amplia, sem nenhuma fiscalização da ONU. As bestas anteriores,
de Nero a Hitler, dispunham de
poder e força, mas Nero se limitou
a pendurar cristãos ensopados de
petróleo nos postes da Domus Aurea, botou fogo neles para iluminar suas festas. Hitler fez mais
-e como!-, mas o estrago não
chegou a dimensões apocalípticas. Sobrevivemos aos campos de
concentração, às câmaras de gás e
aos fornos crematórios.
Mas podemos, a qualquer momento, ir para os ares ou para debaixo da terra de um momento
para outro, inclusive por um defeito de fabricação ou operação
do arsenal norte-americano. Um
amigo me provou que há 666 armas diferentes capazes de destruir a civilização milhares de vezes. E, como não apelou para os
logaritmos, como o padre Cipriano, mesmo sem entender direito o
seu raciocínio, se não lhe dei fé,
dei-lhe o devido crédito.
Texto Anterior: Birds of Prey Próximo Texto: Panorâmica - Teatro: Albano Sargaço seleciona elenco de "Hamlet" Índice
|