São Paulo, segunda-feira, 04 de julho de 2005

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NELSON ASCHER

O Velho Marinheiro

De todas as tradições poéticas européias e ocidentais, a de língua inglesa é a mais rica, variada e completa. Se o italianos têm Dante e sua "Divina Comédia", se os franceses nos legaram "As Flores do Mal" de Baudelaire e os sonetos inexauríveis de Mallarmé, se a Península Ibérica gerou "Os Lusíadas" de Camões e as "Soledades" de Góngora, se o alemão e o russo contêm tesouros como os produzidos por Goethe e Púchkin, a Inglaterra, a Irlanda, a Escócia e, nos séculos recentes, lugares tão diferentes como os Estados Unidos e a Austrália, a Índia, o Caribe e a África do Sul oferecem ao leitor de poesia um cosmos auto-suficiente ao qual não faltam, desde os primórdios da Idade Média até nossos dias, obras superlativas.
Críticos e amadores, historiadores e freqüentadores ocasionais, falantes nativos do inglês e estrangeiros interessados, no entanto, concordam geralmente com uma constatação: a de que foi na virada dos séculos 18/19 que a poesia britânica atingiu um de seus ápices admiráveis. Meia dúzia de nomes, de William Blake (1757-1827) a John Keats (1795-1821), passando por William Wordsworth (1770-1850), Samuel Taylor Coleridge (1772-1834), Lord Byron (1788-1824) e Percy Shelley (1792-1822), foram responsáveis por uma explosão qualitativa e quantitativa que tem poucos paralelos em outras épocas ou países.
O que todos os autores acima tinham em comum era viverem, durante a era de transição em que se inaugurou a civilização industrial moderna, no próprio olho do ciclone. Eles se beneficiaram também da convergência de idéias e descobertas, de teorias e ansiedades, da fermentação política e intelectual oriundas dos quatro cantos do continente. Que tenham, porém, se mostrado à altura do chamado de seus tempos e, com isso, criado e firmado os fundamentos do universo poético que ainda habitamos, não era tarefa simples ou fácil e exigiu o esforço de duas gerações excepcionalmente dotadas.
Nesse sexteto de cordas vocais, Coleridge foi talvez o personagem mais excêntrico. Aliando uma imaginação ilimitada a uma personalidade frágil e doentia que um casamento infeliz e o apego pelo láudano (um derivado líquido do ópio) contribuíram para acentuar, sua trajetória lembra a de seu irmão espiritual germânico, Friedrich Hoelderlin (1770-1843). Como no caso do alemão, seus interesses filosóficos não eram menores que os literários (Coleridge foi um grande estudioso da nova filosofia alemã, cujos conceitos aclimatou à teoria da literatura em sua pátria) e, também no seu caso, após alguns anos de trabalho frenético, sua veia poética secou.
No decorrer desses anos, os derradeiros do século 18 e primeiros do seguinte, o inglês escreveu um número reduzido de poemas, justamente aqueles que lhe assegurariam a fama. Destaca-se entre esses um poema a seu modo único, imprevisível, uma das obras cuja necessidade e aparição não podiam ser deduzidas daquelas que a antecederam nem de suas contemporâneas. Trata-se de "The Rime of the Ancient Mariner" (A Balada do Velho Marinheiro), uma narrativa em 625 versos escrita entre 1797-98 e publicada originalmente no livro que, reunindo textos de Wordsworth e Coleridge, fundou e estabeleceu o romantismo inglês: "Lyrical Ballads" (1798).
O poema, recorrendo a formas antigas e populares, a um vocabulário arcaico e rebuscado, narra a história fantástica de um marujo que, por matar com sua besta ou balestra (crossbow) o albatroz, ave de bom agouro que acompanhava o navio, provoca a perdição de sua nau e de seus companheiros. Carregada de uma simbologia religiosa vinculada ao pecado e à culpa, à purgação e à redenção final, a balada segue interessando gerações e gerações graças a seu ritmo, seja o poético, seja o narrativo, ao tema misterioso e assustador, às descrições deslumbrantes. Todos os elementos que o compõem convergem e se potencializam como por milagre.
Não é à toa, assim, que o texto atraiu exegeses e interpretações as mais diversas, além de ilustradores talentosos e tradutores para inúmeros idiomas. E, embora já houvesse algumas para o português, a mais bem-sucedida acaba de sair.
Talvez seja mesmo necessário ter traduzido poesia para se obter uma noção da infinitude de dificuldades que o tradutor Alípio Correia de Franca Neto se predispôs a equacionar e resolver quando decidiu não apenas verter a balada de Coleridge, mas respeitar (com liberdades calculadas e adequadas) seus metros, rimas e aliterações. Não é o menor de seus diversos méritos que tenha conseguido alcançar em nosso vernáculo a concisão do original, preservando o pulso da história contada e não a tornando mais obscura do que esta propositadamente é.
O volume, uma publicação da Ateliê Editorial, não se resume ao texto bilíngüe da balada. Prefaciado por uma bela e concisa apresentação de Alfredo Bosi, ele contém uma longa discussão do poema escrita pelo tradutor, a tradução, igualmente feliz, de outro poema central de Coleridge, "Kubla Khan", acompanhado de um estudo do grande crítico americano Harold Bloom. Ademais, a edição estampa as ilustrações de Gustave Doré, que dão uma dimensão extra e particular à narrativa, acrescentando elementos visuais pertinentes a seu caráter onírico.
O empenho e dedicação de Alípio Correia provam, mais uma vez, que a tradução, inclusive ou sobretudo a dos poemas difíceis, é possível e necessária, que nossa língua, se cuidadosamente tratada, é capaz de abrigar o que quer que seja, e que tampouco falta talento no Brasil: o que falta é reconhecê-lo.


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