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NELSON ASCHER
O Velho Marinheiro
De todas as tradições poéticas
européias e ocidentais, a de
língua inglesa é a mais rica, variada e completa. Se o italianos
têm Dante e sua "Divina Comédia", se os franceses nos legaram
"As Flores do Mal" de Baudelaire
e os sonetos inexauríveis de Mallarmé, se a Península Ibérica gerou "Os Lusíadas" de Camões e as
"Soledades" de Góngora, se o alemão e o russo contêm tesouros como os produzidos por Goethe e
Púchkin, a Inglaterra, a Irlanda,
a Escócia e, nos séculos recentes,
lugares tão diferentes como os Estados Unidos e a Austrália, a Índia, o Caribe e a África do Sul oferecem ao leitor de poesia um cosmos auto-suficiente ao qual não
faltam, desde os primórdios da
Idade Média até nossos dias,
obras superlativas.
Críticos e amadores, historiadores e freqüentadores ocasionais,
falantes nativos do inglês e estrangeiros interessados, no entanto, concordam geralmente com
uma constatação: a de que foi na
virada dos séculos 18/19 que a
poesia britânica atingiu um de
seus ápices admiráveis. Meia dúzia de nomes, de William Blake
(1757-1827) a John Keats (1795-1821), passando por William
Wordsworth (1770-1850), Samuel
Taylor Coleridge (1772-1834),
Lord Byron (1788-1824) e Percy
Shelley (1792-1822), foram responsáveis por uma explosão qualitativa e quantitativa que tem
poucos paralelos em outras épocas ou países.
O que todos os autores acima tinham em comum era viverem,
durante a era de transição em
que se inaugurou a civilização industrial moderna, no próprio
olho do ciclone. Eles se beneficiaram também da convergência de
idéias e descobertas, de teorias e
ansiedades, da fermentação política e intelectual oriundas dos
quatro cantos do continente. Que
tenham, porém, se mostrado à altura do chamado de seus tempos
e, com isso, criado e firmado os
fundamentos do universo poético
que ainda habitamos, não era tarefa simples ou fácil e exigiu o esforço de duas gerações excepcionalmente dotadas.
Nesse sexteto de cordas vocais,
Coleridge foi talvez o personagem
mais excêntrico. Aliando uma
imaginação ilimitada a uma personalidade frágil e doentia que
um casamento infeliz e o apego
pelo láudano (um derivado líquido do ópio) contribuíram para
acentuar, sua trajetória lembra a
de seu irmão espiritual germânico, Friedrich Hoelderlin (1770-1843). Como no caso do alemão,
seus interesses filosóficos não
eram menores que os literários
(Coleridge foi um grande estudioso da nova filosofia alemã, cujos
conceitos aclimatou à teoria da literatura em sua pátria) e, também no seu caso, após alguns
anos de trabalho frenético, sua
veia poética secou.
No decorrer desses anos, os derradeiros do século 18 e primeiros
do seguinte, o inglês escreveu um
número reduzido de poemas, justamente aqueles que lhe assegurariam a fama. Destaca-se entre
esses um poema a seu modo único, imprevisível, uma das obras
cuja necessidade e aparição não
podiam ser deduzidas daquelas
que a antecederam nem de suas
contemporâneas. Trata-se de
"The Rime of the Ancient Mariner" (A Balada do Velho Marinheiro), uma narrativa em 625
versos escrita entre 1797-98 e publicada originalmente no livro
que, reunindo textos de Wordsworth e Coleridge, fundou e estabeleceu o romantismo inglês:
"Lyrical Ballads" (1798).
O poema, recorrendo a formas
antigas e populares, a um vocabulário arcaico e rebuscado, narra a história fantástica de um
marujo que, por matar com sua
besta ou balestra (crossbow) o albatroz, ave de bom agouro que
acompanhava o navio, provoca a
perdição de sua nau e de seus
companheiros. Carregada de
uma simbologia religiosa vinculada ao pecado e à culpa, à purgação e à redenção final, a balada
segue interessando gerações e gerações graças a seu ritmo, seja o
poético, seja o narrativo, ao tema
misterioso e assustador, às descrições deslumbrantes. Todos os elementos que o compõem convergem e se potencializam como por
milagre.
Não é à toa, assim, que o texto
atraiu exegeses e interpretações
as mais diversas, além de ilustradores talentosos e tradutores para
inúmeros idiomas. E, embora já
houvesse algumas para o português, a mais bem-sucedida acaba
de sair.
Talvez seja mesmo necessário
ter traduzido poesia para se obter
uma noção da infinitude de dificuldades que o tradutor Alípio
Correia de Franca Neto se predispôs a equacionar e resolver quando decidiu não apenas verter a
balada de Coleridge, mas respeitar (com liberdades calculadas e
adequadas) seus metros, rimas e
aliterações. Não é o menor de seus
diversos méritos que tenha conseguido alcançar em nosso vernáculo a concisão do original, preservando o pulso da história contada e não a tornando mais obscura do que esta propositadamente é.
O volume, uma publicação da
Ateliê Editorial, não se resume ao
texto bilíngüe da balada. Prefaciado por uma bela e concisa
apresentação de Alfredo Bosi, ele
contém uma longa discussão do
poema escrita pelo tradutor, a
tradução, igualmente feliz, de outro poema central de Coleridge,
"Kubla Khan", acompanhado de
um estudo do grande crítico americano Harold Bloom. Ademais, a
edição estampa as ilustrações de
Gustave Doré, que dão uma dimensão extra e particular à narrativa, acrescentando elementos
visuais pertinentes a seu caráter
onírico.
O empenho e dedicação de Alípio Correia provam, mais uma
vez, que a tradução, inclusive ou
sobretudo a dos poemas difíceis, é
possível e necessária, que nossa
língua, se cuidadosamente tratada, é capaz de abrigar o que quer
que seja, e que tampouco falta talento no Brasil: o que falta é reconhecê-lo.
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