São Paulo, sexta-feira, 04 de julho de 2008

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CARLOS HEITOR CONY

Almas mortas e possessas


Estava relendo Dostoievski quando me lembrei que o maior problema da Rússia é a alma russa em si mesma

ESTOU METIDO em releituras: no início do ano, me prometera voltar aos clássicos do século 19, sobretudo aos romancistas. Nem a sociologia nem a psicologia haviam adquirido autonomia, estavam longe de serem ciências isoladas e pretensamente exatas.
Cabia ao romancista não apenas contar uma história, mas fazer as vezes de sociólogo e do psicólogo. Stendhal foi o embrião de Freud. E Balzac, em muitos sentidos, antecedeu a Marx. Ambos, com a vantagem da ficção.
Após a curtição dos franceses, passei aos russos. E estava justamente relendo Dostoievski quando me lembrei que o maior problema da Rússia é a alma russa em si mesma, essa alma que Gogol classificou de "morta" e que Dostoievski, pegando a deixa de seu antecessor, classificaria de "possessa".
Cenário: no julgamento de Dimitri Karamazov, o promotor cita uma passagem de Gogol, exatamente aquela que finaliza a primeira parte do romance: "Um grande escritor, no final de uma de suas obras-primas, comparando a Rússia a uma fogosa tróica que galopa para um fim desconhecido, exclama: Quem te inventou? E diante dessa tróica em disparada, todos os povos se afastam".
Fui conferir em Gogol, na tradução de Tatiana Belinky: "Ei tróica, pássaro-tróica, quem foi que te inventou? Só podias ter nascido de um povo atrevido, naquela terra que não está para brincadeiras, mas espraiou-se, imensa e alastrada, pela metade do mundo. E não é assim que tu mesma voas, Rússia, qual uma tróica impetuosa que ninguém consegue alcançar? Debaixo de ti fumega a estrada, tremem as pontes, tudo recua e fica para trás. Rússia, pra onde voas? Responde! Ela não responde. Vibram os sininhos da tróica em seu tilintar maravilhoso e, de olhar cauteloso, afastam-se e abrem-lhe os caminhos os outros povos da Terra".
Um dos grandes paradoxos (talvez o maior) do século 20 foi o desmentido que a Rússia feudal deu a Marx ao fazer a revolução comunista antes da Alemanha, da Inglaterra e de outros países industrializados. E tornou-se superpotência militar, com acesso ao arsenal nuclear e à conquista espacial, mas sem deixar de ser uma economia quase subdesenvolvida.
Uma realidade que se enquadra na imagem de Gogol, a tróica que não se sabe quem inventou e voa, voa para o desconhecido.
Após a união de diversos Estados socialistas, fragmentou-se em nações autônomas e desiguais, mas todos continuam russos.
Um deles assim se expressou: "Todos podem entender de tudo, mas somente nós podemos entender a alma da Rússia".
No final do julgamento de Dimitri Karamazov, os comentários no tribunal são registrados por Dostoievski com aquela obsessão do epilético em ir fundo naquilo que acredita ser a verdade.
Textualmente: "Na semana passada, um membro do Parlamento inglês interpelou o ministério a respeito dos niilistas russos e perguntou: não seria tempo de ocuparmos essa nação bárbara para educá-la?"
Palavras que constantemente podemos ouvir dos líderes ocidentais, que nem mesmo com a surpreendente ascensão da China ao cenário mundial, continuamos a ouvir ou subentender nas reuniões de cúpula que já aceitam a Rússia como um deles. Tróica não é Cabriolé e muito menos Chevrolet.
Nisso tudo, impressionou-me uma declaração lida há tempos nos jornais. Não, não era de Tolstoi, de Dostoievski, de Gogol, de Tchecov ou de Turgueniev.
Era do Brizola mesmo, que, embora sem formação literária, tinha um instinto surpreendente para usar as palavras.
Cito de memória: "Os russos são campeões de xadrez, eles estão cinco lances à frente dos outros. Perdem batalhas mas nunca perderam a guerra".
Lembro uma cena de "Crime e Castigo". Raskolnikov tem certeza de que o juiz Porfírio desconfia dele como o assassino de duas velhas. De repente, a autoridade dá uma risada que é quase uma gargalhada.
O estudante pela primeira vez perde o controle e ameaça: "Você pode me condenar, me mandar para a Sibéria, mas não tolero que ria de mim".
John Kennedy perguntou certa vez a um diplomata soviético: "O que devo fazer para entender os russos?".
A resposta foi breve: "Leia os romancistas russos". Esse artigo talvez exija uma conclusão de tudo o que expus acima. Respondo: como concluir aquilo que Gogol e Dostoievski deixaram sem resposta?


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