São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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Julian Barnes cultiva águas turvas

Contos de "Do Outro Lado da Mancha" tratam da relação entre ingleses e franceses

SYLVIA COLOMBO
EDITORA-ADJUNTA DA ILUSTRADA

Julian Barnes, 55, nunca atravessou o canal da Mancha a nado. Ainda assim, cruzar os cerca de 33 km que separam a Inglaterra da França é sua maior obsessão, que realiza por meio de sua literatura.
O escritor inglês é um francófilo assumido. Desde criança, influenciado pelos pais, ambos professores de francês, interessou-se pela cultura do país vizinho.
"Do Outro Lado da Mancha", coletânea de contos lançada agora no Brasil, reúne dez histórias sobre ingleses na França nos últimos três séculos.
Da mesma geração de Ian McEwan e Martin Amis, Barnes é, hoje, um dos mais prestigiados escritores britânicos. Recebeu duas indicações para o Booker Prize, com "O Papagaio de Flaubert" e "Inglaterra, Inglaterra" -lançado no Brasil no ano passado.
Atualmente, o escritor prepara dois livros para o início do próximo ano: uma coleção de ensaios sobre a França ("Something to Declare") e uma tradução para o inglês de um livro de Alphonse Daudet (1840-1897).
Leia abaixo os principais trechos da entrevista que Julian Barnes concedeu à Folha, por telefone, de Londres, onde vive.

Folha - O que está por trás de seu interesse pela França? É uma tentativa de entender melhor a Inglaterra ou apenas de fugir dela?
Julian Barnes -
Até onde tenho consciência, sou interessado pela França apenas pelo que ela é. É verdade que faço comparações o tempo todo. Mas, quando se escolhe um segundo país, como fiz com a França, a relação que temos com ele é mais sentimental e idealizada. Por exemplo, eu nunca me sinto responsável pelas coisas ruins que acontecem lá. Por outro lado, se vejo os maus políticos ingleses ou trens colidindo aqui, acho que também sou culpado.

Folha - No conto sobre a construção da ferrovia de Paris a Rouen, no século 19, os trabalhadores franceses e ingleses falam uma língua mista e alguém diz: "É assim que falaremos no futuro". Você acha que a troca cultural entre França e Inglaterra cresceu desde então?
Barnes -
Quando pesquisei a história do período, fiquei surpreso ao descobrir que havia mesmo uma língua mista entre inglês e francês que os operários falavam e que praticamente desapareceu. Imaginei que quem a ouvisse na época pensaria: "Será que é assim que falaremos no futuro?". Hoje, uma língua única misturando inglês e francês é impensável.

Folha - Você costumava trabalhar como lexicógrafo, assim como a protagonista de "Eternamente". É uma história autobiográfica?
Barnes -
No começo dos anos 70, trabalhei no "Oxford Dictionary". E havia uma velha senhora que um dia me contou que tivera um noivo, mas que ele se "apaixonara" pela Revolução (russa) e partira. Pensei em como poderia ser a vida de alguém que passa seus dias sob a sombra de uma desaparição. Mais de 20 anos depois, lembrei-me dela e escrevi essa história, sobre a lexicógrafa que passa a vida a guardar o túmulo de um soldado inglês enterrado na França durante a Primeira Guerra.

Folha - Em "Interferência", um compositor inglês e a mulher, na França, tentam em vão ouvir a transmissão da rádio inglesa. A interferência é uma metáfora da falta de comunicação entre os países?
Barnes -
Há duas idéias de interferência aí. A que mencionou e a que uma vida exerce em outra, sempre que se compartilha a existência. Nesse conto está o tema de todo o livro: o que acontece quando pessoas se transportam para outra cultura, o que perdem, o que ganham e o que interfere.



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