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RESENHA DA SEMANA
O triunfo do real
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Shelley (1792-1822) teve
uma morte ao mesmo tempo estranha e reveladora. Talvez
mais do que a sua vida, que tanto atraiu a atenção dos biógrafos, à procura do que a existência mítica e apaixonada do poeta
podia revelar sobre uma das
obras mais emblemáticas do romantismo inglês.
Shelley morreu no mar, a bordo do barco que havia mandado
construir em Gênova. "O poeta
não sabia nadar, embora fosse
um apaixonado pelo mar que
celebrou em seus versos", escreve Leonardo Fróes no ensaio
que acompanha a sua tradução
de "O Triunfo da Vida", poema
de 544 versos que Shelley deixou
inacabado ao naufragar ao largo
da costa da Toscana.
Que tipo de pessoa manda
construir uma escuna para si
próprio se não sabe nadar? Shelley cresceu sob os ecos da Revolução Francesa. Suas idéias libertárias e reformistas se manifestam não apenas em relação à
política mas aos costumes. Ainda em Oxford, escreveu um
panfleto sobre a necessidade do
ateísmo e alguns anos mais tarde um poema em que propunha
a "Beleza Intelectual" no lugar
de Deus.
Tinha tanta aversão à tirania
quanto ao machismo. Acreditava na "força libertadora do
amor". Aos 22 anos, apaixonado, fugiu para Paris com a futura
mulher e autora do gótico
"Frankenstein", Mary Shelley,
então com 17 anos, e a irmã de
criação desta, Claire Clairmont,
de 16 anos, que se tornaria
amante de Byron e muito possivelmente de Shelley também.
Em 1818, por causa da tuberculose, Shelley vai para a Itália
com Mary, os filhos pequenos
do casal e Claire. Moram em várias cidades (Milão, Roma, Nápoles, Pisa etc.) num modelo de
vida nômade e comunitária que
anuncia, 150 anos antes, o espírito libertário da revolução sexual
dos anos 60.
A tentativa romântica de fazer
da vida um exercício do programa existencial defendido pela
obra explica o interesse dos biógrafos. Que tipo de pessoa manda construir para si próprio uma
escuna se não sabe nadar? Alguém cuja idealização da natureza não se restringe à exaltação
de seus versos.
Segundo Mary Shelley, partes
de "O Triunfo da Vida" foram
escritas no mar. "Na ocasião, (o
poeta) dividia seu tempo entre
os cuidados com o barco e a
criação desse último poema",
escreve Fróes.
Richard Holmes, biógrafo de
Shelley, também fala do fascínio
exercido pelas águas sobre o
poeta: "Ele tinha um caso amoroso com as águas da Itália; não
as conquistava como Byron
com suas corridas e façanhas de
nadador, mas entregava-se a
elas". A ponto de ter se jogado
num poço natural e permanecido no fundo, imóvel como um
peixe, até alguém tirá-lo de lá.
"O Triunfo da Vida", inspirado no Inferno de Dante, descreve um cortejo fantasmagórico
de "cativos agrilhoados", desfilando diante dos olhos do autor:
"No êxtase da idéia alucinante,/
Eis o teor do sonho que acordou-me:/ Me vi sentado à beira
dos passantes".
Pouco antes de morrer, Shelley teve pesadelos em que também via fantasmas e a si mesmo,
como um duplo. Dois filhos do
casal tinham morrido nas viagens pela Itália, e Mary acabava
de sofrer um aborto, que por
pouco não a matou. O amor, para completar, já não era aquela
"força libertadora".
A idéia do duplo, fundamental
para o imaginário romântico,
talvez seja a chave do idealismo
de Shelley. Para o poeta, a natureza é imaginação. A vida é como o sonho em que o autor se
duplica e se vê como outro. O
poeta romântico observa a si
mesmo, o que lhe garante falar
de uma morte estética sem sofrê-la na carne. É essa idealização da natureza que o faz se entregar às águas sem saber nadar.
Como se a vida fosse um poema,
apenas imaginário e simbólico,
de onde o real (a morte) tivesse
sido banido. Não há Deus nem
destino, só o desejo do poeta de
fazer da vida uma projeção mágica da sua imaginação.
Desse ponto de vista, há algo
premonitório no funéreo "O
Triunfo da Vida", que nada
mais é do que um desfile triunfal
da morte, e sobretudo no "Frankenstein" (1818) de Mary Shelley, cuja idéia surgiu durante
um célebre encontro na Suíça
entre a autora, seu marido,
Byron e Claire Clairmont. Afinal, o romance é a alegoria da
vingança do real contra o idealismo inconsequente do homem
que acredita poder criar a vida.
Como se esta fosse apenas fruto
da sua imaginação.
O Triunfo da Vida
The Triumph of Life
Autor: P.B. Shelley
Tradução: Leonardo Fróes
Editora: Rocco
Quanto: R$ 22 (124 págs.)
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