São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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RESENHA DA SEMANA

O triunfo do real

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Shelley (1792-1822) teve uma morte ao mesmo tempo estranha e reveladora. Talvez mais do que a sua vida, que tanto atraiu a atenção dos biógrafos, à procura do que a existência mítica e apaixonada do poeta podia revelar sobre uma das obras mais emblemáticas do romantismo inglês.
Shelley morreu no mar, a bordo do barco que havia mandado construir em Gênova. "O poeta não sabia nadar, embora fosse um apaixonado pelo mar que celebrou em seus versos", escreve Leonardo Fróes no ensaio que acompanha a sua tradução de "O Triunfo da Vida", poema de 544 versos que Shelley deixou inacabado ao naufragar ao largo da costa da Toscana.
Que tipo de pessoa manda construir uma escuna para si próprio se não sabe nadar? Shelley cresceu sob os ecos da Revolução Francesa. Suas idéias libertárias e reformistas se manifestam não apenas em relação à política mas aos costumes. Ainda em Oxford, escreveu um panfleto sobre a necessidade do ateísmo e alguns anos mais tarde um poema em que propunha a "Beleza Intelectual" no lugar de Deus.
Tinha tanta aversão à tirania quanto ao machismo. Acreditava na "força libertadora do amor". Aos 22 anos, apaixonado, fugiu para Paris com a futura mulher e autora do gótico "Frankenstein", Mary Shelley, então com 17 anos, e a irmã de criação desta, Claire Clairmont, de 16 anos, que se tornaria amante de Byron e muito possivelmente de Shelley também.
Em 1818, por causa da tuberculose, Shelley vai para a Itália com Mary, os filhos pequenos do casal e Claire. Moram em várias cidades (Milão, Roma, Nápoles, Pisa etc.) num modelo de vida nômade e comunitária que anuncia, 150 anos antes, o espírito libertário da revolução sexual dos anos 60.
A tentativa romântica de fazer da vida um exercício do programa existencial defendido pela obra explica o interesse dos biógrafos. Que tipo de pessoa manda construir para si próprio uma escuna se não sabe nadar? Alguém cuja idealização da natureza não se restringe à exaltação de seus versos.
Segundo Mary Shelley, partes de "O Triunfo da Vida" foram escritas no mar. "Na ocasião, (o poeta) dividia seu tempo entre os cuidados com o barco e a criação desse último poema", escreve Fróes.
Richard Holmes, biógrafo de Shelley, também fala do fascínio exercido pelas águas sobre o poeta: "Ele tinha um caso amoroso com as águas da Itália; não as conquistava como Byron com suas corridas e façanhas de nadador, mas entregava-se a elas". A ponto de ter se jogado num poço natural e permanecido no fundo, imóvel como um peixe, até alguém tirá-lo de lá.
"O Triunfo da Vida", inspirado no Inferno de Dante, descreve um cortejo fantasmagórico de "cativos agrilhoados", desfilando diante dos olhos do autor: "No êxtase da idéia alucinante,/ Eis o teor do sonho que acordou-me:/ Me vi sentado à beira dos passantes".
Pouco antes de morrer, Shelley teve pesadelos em que também via fantasmas e a si mesmo, como um duplo. Dois filhos do casal tinham morrido nas viagens pela Itália, e Mary acabava de sofrer um aborto, que por pouco não a matou. O amor, para completar, já não era aquela "força libertadora".
A idéia do duplo, fundamental para o imaginário romântico, talvez seja a chave do idealismo de Shelley. Para o poeta, a natureza é imaginação. A vida é como o sonho em que o autor se duplica e se vê como outro. O poeta romântico observa a si mesmo, o que lhe garante falar de uma morte estética sem sofrê-la na carne. É essa idealização da natureza que o faz se entregar às águas sem saber nadar. Como se a vida fosse um poema, apenas imaginário e simbólico, de onde o real (a morte) tivesse sido banido. Não há Deus nem destino, só o desejo do poeta de fazer da vida uma projeção mágica da sua imaginação.
Desse ponto de vista, há algo premonitório no funéreo "O Triunfo da Vida", que nada mais é do que um desfile triunfal da morte, e sobretudo no "Frankenstein" (1818) de Mary Shelley, cuja idéia surgiu durante um célebre encontro na Suíça entre a autora, seu marido, Byron e Claire Clairmont. Afinal, o romance é a alegoria da vingança do real contra o idealismo inconsequente do homem que acredita poder criar a vida. Como se esta fosse apenas fruto da sua imaginação.

O Triunfo da Vida
The Triumph of Life
    
Autor: P.B. Shelley
Tradução: Leonardo Fróes
Editora: Rocco
Quanto: R$ 22 (124 págs.)



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