São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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Updike relativiza culpas shakespearianas

Divulgação
O norte-americano John Updike, autor de "Gertrudes e Cláudio", que sai no Brasil no fim do mês


FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

Este é um daqueles livros cujo final não importa. Até porque Shakespeare (1564-1616) já o contou lá no século 17.
"Gertrudes e Cláudio", romance do norte-americano John Updike, 69, que a Companhia das Letras põe nas prateleiras no fim deste mês, é uma espécie de prólogo ao "Hamlet" que o dramaturgo inglês escreveu em 1601.
Além da peça, Updike usou registros arcaicos da lenda do príncipe da Dinamarca: o texto latino "Historia Danica", de Saxo Grammaticus, do século 12, mas publicado pela primeira vez em Paris, em 1514; e uma adaptação do mesmo texto, das "Histoires Tragiques" (Histórias Trágicas) que François de Belleforest publicou na mesma cidade, em 1576.
Gertrudes e Cláudio são a mãe e o tio de Hamlet; quando a peça de Shakespeare começa, eles estão recém-casados, pouco depois da morte do rei, também chamado Hamlet, em circunstâncias obscuras -o que provoca a ira e a desconfiança do príncipe.
O que Updike faz é compor uma possível história pregressa ao drama de Shakespeare. Como Gertrudes e Cláudio se envolveram? Eles agiram de modo premeditado para usurpar o trono? São algozes do rei ou suas vítimas?
O romance, que termina no momento imediatamente anterior à peça, se divide em três partes. Em cada uma, os personagens têm um nome diferente.
Na primeira, vêm da "Historia Danica": a rainha é Gerutha, seu marido é Horwendil e o cunhado, Feng. Na segunda, manda a versão de Belleforest: Geruthe, Horvendile e Fengon. A terceira segue a nomenclatura da peça: Gertrudes, Hamlet e Cláudio.
O príncipe e futuro vingador do pai é sucessivamente Amleth, Hamblet e Hamlet, como o camareiro-mor, na peça chamado Polônio, atende antes, no livro, por Corambus e Corambis.
"Eu estava tentando mostrar a história se aproximando do tempo de Shakeaspeare, dos nomes que ele usava", explica Updike, em entrevista à Folha. "E lido com um mito, mais antigo do que a peça, e mitos são fluidos, não são estáveis como um romance; a mudança dos nomes indica isso."
Há outra razão para o estratagema: sublinhar as nuanças pessoais. "Foi um jeito de mostrar as personalidades que continuam por trás desses nomes que mudam, dos deslocamento do mito."
E completa, hesitante: "Talvez não devesse ter feito, torna um pouco mais difícil de ler. Mas achei que um livro assim pequeno deveria apresentar algum desafio para o leitor, algum obstáculo".
Cada uma das partes começa com a mesma frase: "O rei estava encolerizado". Em cada uma, porém, a raiva é de um rei diferente.
Na primeira, ela vem de Rorik, pai de Gerutha, tentando convencer a filha, adolescente rebelde, a casar-se com o juto Horwendil. Na segunda, Horvendile, passados 30 anos de casamento com Geruthe, se exalta porque o único filho não quer voltar ao país. A rainha tenta convencer o rei a aceitar a união de Amleth e Ofélia, filha de Corambis, como estratégia para um regresso. É aqui que o amor entre a rainha e o cunhado, já na meia-idade, se consuma.
Na terceira, 17 anos depois, é Cláudio quem desabafa a ira, ainda contra a teimosia de Hamlet, sobre Gertrudes. Ao que se segue a discussão sobre um terceiro casamento: o da rainha viúva com o amante e rei recém-coroado -desta vez, o argumento de que a boda traria Hamlet de volta (como de fato ocorre) vem do rei.
"Eu nem tinha me dado conta, mas, sim, todas as partes falam sobre casamento. Talvez este romance seja sobre casamento", diz o autor. Certamente, é sobre adultério, tema caro a Updike.
"A sensação de insatisfação da rainha com seu marido se relaciona, de algum modo, à minha experiência de vida", diz o autor, que defende que um romance tem de trazer algo do romancista.
"Na peça, Shakeaspeare fala muito pouco das circunstâncias que antecedem o repentino casamento de Gertrudes e Cláudio. Tentei dar um background razoável. Isso tinha de ser feito em termos modernos, mas com um sabor medieval e tendo em mente que se trata de vikings, mais brutais que as pessoas modernas e menos enfadonhas moralmente."
Updike opta pelo ponto de vista da rainha. Quase feminista, moderna e ferina, ela é expressão -ainda que algo domada, com o passar dos anos- da natureza.
"Anos atrás, na faculdade, li um livro maravilhoso do historiador francês [Jules" Michelet, em que ele fala da relação entre natureza e a prática da feitiçaria por mulheres. Talvez essas mulheres medievais fossem mais ligadas à natureza do que os homens", arrisca.
Ele concorda que, ao ligar a personagem a um entorno natural (olhos como as águas do Sund, cabelos como o cobre), a Dinamarca também está representada na rainha. O país acabava de ser cristianizado, mas ainda se sentia ligado ao paganismo anterior.
É essa personagem telúrica quem conduz a narrativa, que se fecha, no posfácio, com a seguinte conclusão: "Se deixarmos de lado o assassinato e seu encobrimento, Cláudio parece ser um rei competente; Gertrudes, uma rainha nobre; Ofélia, um tesouro de doçura; Polônio, um conselheiro maçante, mas não malévolo; Laertes, um rapaz como os outros. Hamlet arrasta-os todos para a morte".
Ao relativizar as culpas que causam a tragédia em "Hamlet", Updike traz os personagens mais para a esfera palpável e menos para o lado dos arquétipos que Shakespeare cunhou e foram analisados até por Sigmund Freud.
"Os personagens de Shakespeare são muito humanos no que eles dizem; mas, sendo um romance, eu tinha de lhes prover diálogos internos que um dramaturgo não usa e que aproximam os personagens do leitor."
"Eu tento imaginar Gertrudes e Cláudio como pessoas reais, com suas próprias histórias. Eles também são vítimas, de certa forma."



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