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WALTER SALLES
O avanço das cinematografias nacionais na Europa
Pouco antes de lançar o
seu último disco, o excelente
"Próxima Estación... Esperanza",
Manu Chao deu uma série de entrevistas prevendo a escalada dos
movimentos antiglobalização.
Dois meses antes de Gênova, a
coisa podia soar utópica. Hoje,
quando vários jornais europeus
começam a falar -talvez cedo
demais- de um novo maio 68,
nem tanto. Chao também previu
que, na área cultural, reações locais passariam a desafiar cada
vez mais os territórios ocupados
pela indústria cultural norte-americana.
No campo do cinema, na confluência entre artesanato e indústria, a perspectiva de uma reação
contra a máquina hollywoodiana
poderia parecer distante da realidade. Controlando ao mesmo
tempo os meios de produção e de
distribuição, Hollywood se assegurou de uma hegemonia que, na
virada do século passado, parecia
incontestável.
Parecia, mas não era. Para a
surpresa de muitos, algumas cinematografias européias vêm tomando o lugar -e as receitas-
que até há pouco eram do cinema
norte-americano. O caso mais extraordinário é o da França. Mais
de 51% das entradas de cinema
vendidas no país vão hoje para
filmes franceses: um em cada dois
ingressos. É um avanço considerável em relação à porcentagem
de mercado que o cinema francês
obteve durante a década passada,
na casa dos 30 e poucos por cento.
"Pois é, as pessoas se cansam de
comer o mesmo hambúrguer todos os dias", disse-me esta semana um jovem produtor francês.
A reação contra a repetição das
imagens não é, no entanto, suficiente para entender a forte escalada da produção na França. Por
trás desse sucesso, há toda uma filosofia de planejamento do Estado na área audiovisual, que vem
sendo afinada há mais de 20
anos. Não se baseia em recusa fiscal, e sim no conceito de que a
pluralidade da produção deve ser
financiada pelos recursos provenientes do próprio setor audiovisual.
Uma parte significativa da bilheteria dos filmes estrangeiros é
retida para criar um fundo de
produção para os filmes franceses. As redes de televisão -por
definição, concessões públicas outorgadas pelo Estado- são obrigadas por lei a investir em filmes
independentes franceses, impedindo a verticalização da produção. Novos canais a cabo têm de
se submeter automaticamente
aos mesmos princípios. Mecanismos adicionais existem exclusivamente para fomentar a produção
de primeiros filmes.
O resultado dessas ações é uma
produção de 180 filmes franceses
por ano, a mais importante da
Europa. Outros fundos ainda garantem o apoio a filmes de outras
cinematografias, da América Latina, África e Ásia. A diversidade
dessa produção é a mais ampla
possível. Vai desde filmes realizados para o grande público, como
"O Fabuloso Destino de Amélie
Poulain", dirigido por Jean-Pierre Jeunet ("Delicatessen") e visto
por mais de 7 milhões de pessoas,
até o mais radical e sublime Godard dos últimos anos, "Elogio do
Amor".
Não é um sistema perfeito
-vários filmes acabam não estreando, outros financiados majoritariamente pelas televisões
terminam ficando com a cara de
telefilmes. Mas o modelo francês
tem a vantagem de entender a
importância estratégica e geopolítica do audiovisual.
Outros países, como a Espanha,
criaram formas semelhantes de
defesa da produção nacional. Até
mesmo na Itália, cujo audiovisual está em grande parte sob o
domínio de um só homem, Silvio
Berlusconi -uma improvável
mistura de Silvio Santos e Jader
Barbalho-, há uma reação em
curso. O cinema italiano vem resistindo e detém hoje aproximadamente 24% do total da bilheteria. Lá também grandes sucessos
populares como "O Último Beijo",
de Gabriele Muccino, coexistem
com filmes delicados como "O
Quarto do Filho", dirigido por
Nanni Moretti, Palma de Ouro no
último Festival de Cannes.
O crescimento dessas cinematografias nacionais vem acompanhado de um efeito menos positivo. Embora tenham reencontrado o público em seus países de origem, os filmes europeus enfrentam dificuldades crescentes em
cruzar fronteiras. Viajam cada
vez menos. Em outras palavras, o
espaço das cinematografias estrangeiras em países europeus
vem decrescendo.
O que fazer? Há gente trabalhando para alterar essa situação.
Gillo Pontecorvo, diretor do excelente "A Batalha de Argel" e ex-diretor geral do Festival de Veneza, está capitaneando a criação
de uma associação para a distribuição e, possivelmente, co-produção de filmes latinos na Europa
e na América do Sul. Um jovem
de 80 anos de idade, Pontecorvo
luta para abolir as fronteiras entre culturas que deveriam estar
mais próximas do que efetivamente estão. Se der certo, veremos
mais filmes italianos no Brasil. E
vice-versa. Essa associação em
torno do cinema latino deverá ser
anunciada no final de agosto, em
Veneza.
Voltando ao Brasil. Existe aqui
também um projeto em curso
que, parcialmente inspirado nos
modelos que permitiram a resistência e o crescimento do audiovisual europeu, pode ajudar a democratizar o setor. Se forem criadas condições para que uma produção polifônica se estabeleça
efetivamente no Brasil, contemplando desde os nossos mestres
até a moçada do digital, teremos
chances concretas de avançar.
Se isso acontecer, não estaremos
sozinhos. Os filmes mais instigantes que vi neste ano foram o mexicano "Amores Brutos" e o argentino "Mundo Grúa". Sinal de que
a América Latina não está tão
adormecida quanto se pensa.
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