São Paulo, sábado, 04 de agosto de 2001

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WALTER SALLES

O avanço das cinematografias nacionais na Europa

Pouco antes de lançar o seu último disco, o excelente "Próxima Estación... Esperanza", Manu Chao deu uma série de entrevistas prevendo a escalada dos movimentos antiglobalização. Dois meses antes de Gênova, a coisa podia soar utópica. Hoje, quando vários jornais europeus começam a falar -talvez cedo demais- de um novo maio 68, nem tanto. Chao também previu que, na área cultural, reações locais passariam a desafiar cada vez mais os territórios ocupados pela indústria cultural norte-americana.
No campo do cinema, na confluência entre artesanato e indústria, a perspectiva de uma reação contra a máquina hollywoodiana poderia parecer distante da realidade. Controlando ao mesmo tempo os meios de produção e de distribuição, Hollywood se assegurou de uma hegemonia que, na virada do século passado, parecia incontestável.
Parecia, mas não era. Para a surpresa de muitos, algumas cinematografias européias vêm tomando o lugar -e as receitas- que até há pouco eram do cinema norte-americano. O caso mais extraordinário é o da França. Mais de 51% das entradas de cinema vendidas no país vão hoje para filmes franceses: um em cada dois ingressos. É um avanço considerável em relação à porcentagem de mercado que o cinema francês obteve durante a década passada, na casa dos 30 e poucos por cento. "Pois é, as pessoas se cansam de comer o mesmo hambúrguer todos os dias", disse-me esta semana um jovem produtor francês.
A reação contra a repetição das imagens não é, no entanto, suficiente para entender a forte escalada da produção na França. Por trás desse sucesso, há toda uma filosofia de planejamento do Estado na área audiovisual, que vem sendo afinada há mais de 20 anos. Não se baseia em recusa fiscal, e sim no conceito de que a pluralidade da produção deve ser financiada pelos recursos provenientes do próprio setor audiovisual.
Uma parte significativa da bilheteria dos filmes estrangeiros é retida para criar um fundo de produção para os filmes franceses. As redes de televisão -por definição, concessões públicas outorgadas pelo Estado- são obrigadas por lei a investir em filmes independentes franceses, impedindo a verticalização da produção. Novos canais a cabo têm de se submeter automaticamente aos mesmos princípios. Mecanismos adicionais existem exclusivamente para fomentar a produção de primeiros filmes.
O resultado dessas ações é uma produção de 180 filmes franceses por ano, a mais importante da Europa. Outros fundos ainda garantem o apoio a filmes de outras cinematografias, da América Latina, África e Ásia. A diversidade dessa produção é a mais ampla possível. Vai desde filmes realizados para o grande público, como "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", dirigido por Jean-Pierre Jeunet ("Delicatessen") e visto por mais de 7 milhões de pessoas, até o mais radical e sublime Godard dos últimos anos, "Elogio do Amor".
Não é um sistema perfeito -vários filmes acabam não estreando, outros financiados majoritariamente pelas televisões terminam ficando com a cara de telefilmes. Mas o modelo francês tem a vantagem de entender a importância estratégica e geopolítica do audiovisual.
Outros países, como a Espanha, criaram formas semelhantes de defesa da produção nacional. Até mesmo na Itália, cujo audiovisual está em grande parte sob o domínio de um só homem, Silvio Berlusconi -uma improvável mistura de Silvio Santos e Jader Barbalho-, há uma reação em curso. O cinema italiano vem resistindo e detém hoje aproximadamente 24% do total da bilheteria. Lá também grandes sucessos populares como "O Último Beijo", de Gabriele Muccino, coexistem com filmes delicados como "O Quarto do Filho", dirigido por Nanni Moretti, Palma de Ouro no último Festival de Cannes.
O crescimento dessas cinematografias nacionais vem acompanhado de um efeito menos positivo. Embora tenham reencontrado o público em seus países de origem, os filmes europeus enfrentam dificuldades crescentes em cruzar fronteiras. Viajam cada vez menos. Em outras palavras, o espaço das cinematografias estrangeiras em países europeus vem decrescendo.
O que fazer? Há gente trabalhando para alterar essa situação. Gillo Pontecorvo, diretor do excelente "A Batalha de Argel" e ex-diretor geral do Festival de Veneza, está capitaneando a criação de uma associação para a distribuição e, possivelmente, co-produção de filmes latinos na Europa e na América do Sul. Um jovem de 80 anos de idade, Pontecorvo luta para abolir as fronteiras entre culturas que deveriam estar mais próximas do que efetivamente estão. Se der certo, veremos mais filmes italianos no Brasil. E vice-versa. Essa associação em torno do cinema latino deverá ser anunciada no final de agosto, em Veneza.
Voltando ao Brasil. Existe aqui também um projeto em curso que, parcialmente inspirado nos modelos que permitiram a resistência e o crescimento do audiovisual europeu, pode ajudar a democratizar o setor. Se forem criadas condições para que uma produção polifônica se estabeleça efetivamente no Brasil, contemplando desde os nossos mestres até a moçada do digital, teremos chances concretas de avançar.
Se isso acontecer, não estaremos sozinhos. Os filmes mais instigantes que vi neste ano foram o mexicano "Amores Brutos" e o argentino "Mundo Grúa". Sinal de que a América Latina não está tão adormecida quanto se pensa.



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