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NELSON FREIRE E SINFÔNICA DE HEIDELBERG
Atrás do avesso do contrário num "Concerto" de Beethoven
ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA
Ele toca, a gente vai. Nelson
Freire nunca é menos que ótimo, e com frequência é extraordinário. Anteontem, foi genial.
Nem sempre se dá tão bem com
orquestra. Até porque o grau de
interioridade com que ele faz música presta-se mais para o repertório solo do que para os concertos.
Mas quem diria? Justamente no
mais teatral dos concertos de Beethoven (1770-1827) -o nš 4-
Nelson Freire miraculou a noite,
transformando a música naquilo
que ela pode ser, e só raramente é.
Transformou a boa Sinfônica de
Heidelberg numa excelente orquestra, também. O regente Thomas Fey, discípulo de Nikolaus
Harnoncourt, criou a Sinfônica
em 1993. É um grupo simpático e
vistoso. Se não chega a ser uma
grande orquestra, ainda, talvez seja só porque conserva alguma coisa do espírito de cidade pequena
-o que não deixa de dar um sopro de juventude à música.
Mas na Sala São Paulo estavam
no palco com Nelson Freire, e
Nelson Freire anda tocando como
nunca. Quando ele acende de verdade, aqui e ali, numa peça, num
movimento qualquer, a música
deixa o resto do que a gente chama de música para trás, e abre as
portas de outro reino da vida.
Por exemplo: no "Andante" do
Beethoven. Era o musicólogo Joseph Kerman quem costumava
analisá-lo como uma versão do
mito de "Orfeu e Eurídice". E o
que foi que se ouviu? A orquestra
atacando em fortíssimo, como de
hábito, e o piano à distância, no limite do inaudível, também como
de hábito. Mas a orquestra com
articulação barroca, ou melhor,
pós-barroca, sugerindo Gluck, o
compositor de "Orfeu e Eurídice". E Freire cantando nas profundezas, atrás do avesso do contrário, dizendo tudo no nada.
Contraste total com os rápidos:
escalas, arpejos, sequências: tudo
milagraria. As escalas ascendentes articuladíssimas, terminando
em pequenas curvas e doçuras,
com efeito (só o efeito) de lentas.
O pedal como elemento da música, não do piano. A cadência exuberante, esquizóide, do "Allegro",
uma tempestade de acordes cortada por lirismos.
Bis: o "Rondó" de novo. Ninguém aguentaria não ouvir um
pouco mais, mas qualquer outra
música soaria fora de propósito.
Depois do bis: qualquer música
soaria fora de propósito. A "Sinfonia nš 103" de Haydn é uma felicidade, e a Sinfônica deve ter tocado com charme. Mas, para alguns
de nós, o que se escutou na primeira parte proibia ouvir qualquer outra coisa por horas -como explicava outro crítico a seu
filho, na porta da saída, abotoando o casacão do pequeno contra o
gelo da noite.
Avaliação:
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