São Paulo, quarta-feira, 04 de setembro de 2002

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NELSON FREIRE E SINFÔNICA DE HEIDELBERG

Atrás do avesso do contrário num "Concerto" de Beethoven

ARTHUR NESTROVSKI
ARTICULISTA DA FOLHA

Ele toca, a gente vai. Nelson Freire nunca é menos que ótimo, e com frequência é extraordinário. Anteontem, foi genial.
Nem sempre se dá tão bem com orquestra. Até porque o grau de interioridade com que ele faz música presta-se mais para o repertório solo do que para os concertos. Mas quem diria? Justamente no mais teatral dos concertos de Beethoven (1770-1827) -o nš 4- Nelson Freire miraculou a noite, transformando a música naquilo que ela pode ser, e só raramente é.
Transformou a boa Sinfônica de Heidelberg numa excelente orquestra, também. O regente Thomas Fey, discípulo de Nikolaus Harnoncourt, criou a Sinfônica em 1993. É um grupo simpático e vistoso. Se não chega a ser uma grande orquestra, ainda, talvez seja só porque conserva alguma coisa do espírito de cidade pequena -o que não deixa de dar um sopro de juventude à música.
Mas na Sala São Paulo estavam no palco com Nelson Freire, e Nelson Freire anda tocando como nunca. Quando ele acende de verdade, aqui e ali, numa peça, num movimento qualquer, a música deixa o resto do que a gente chama de música para trás, e abre as portas de outro reino da vida.
Por exemplo: no "Andante" do Beethoven. Era o musicólogo Joseph Kerman quem costumava analisá-lo como uma versão do mito de "Orfeu e Eurídice". E o que foi que se ouviu? A orquestra atacando em fortíssimo, como de hábito, e o piano à distância, no limite do inaudível, também como de hábito. Mas a orquestra com articulação barroca, ou melhor, pós-barroca, sugerindo Gluck, o compositor de "Orfeu e Eurídice". E Freire cantando nas profundezas, atrás do avesso do contrário, dizendo tudo no nada.
Contraste total com os rápidos: escalas, arpejos, sequências: tudo milagraria. As escalas ascendentes articuladíssimas, terminando em pequenas curvas e doçuras, com efeito (só o efeito) de lentas. O pedal como elemento da música, não do piano. A cadência exuberante, esquizóide, do "Allegro", uma tempestade de acordes cortada por lirismos.
Bis: o "Rondó" de novo. Ninguém aguentaria não ouvir um pouco mais, mas qualquer outra música soaria fora de propósito.
Depois do bis: qualquer música soaria fora de propósito. A "Sinfonia nš 103" de Haydn é uma felicidade, e a Sinfônica deve ter tocado com charme. Mas, para alguns de nós, o que se escutou na primeira parte proibia ouvir qualquer outra coisa por horas -como explicava outro crítico a seu filho, na porta da saída, abotoando o casacão do pequeno contra o gelo da noite.


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