São Paulo, sábado, 04 de setembro de 2004

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RODAPÉ

Memórias da barbárie brasileira

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

"Não Falei", segundo romance de Beatriz Bracher, tem um impacto afetivo muito menor do que "Azul e Dura", seu livro de estréia. E, por isso mesmo, consegue articular de modo mais minucioso e distanciado o tema que perpassa as duas narrativas: o "gosto amargo de derrota e sujeira" que identifica sucessivas gerações da história recente do Brasil.
"Azul e Dura" -livro cuja importância em nossa literatura contemporânea ainda está por ser dimensionada- é um "mea culpa" com viés autobiográfico. O evento que deflagra a narrativa é ficcional: uma jovem mãe da elite paulistana atropela a cadeira de rodas de uma deficiente mental diante da escola em que vai buscar os filhos com seu carro importado.
A partir daí, porém, Bracher empreende uma devastadora desconstrução da boa consciência ostentada pelos filhos esclarecidos do "milagre econômico", descobre por trás das crises de pânico e das ressacas de suas personagens o mandamento capital dessa "irmandade apátrida" da riqueza globalizada: o "único pecado é o fracasso", como fica patente no processo sofrido pela protagonista, em que o reconhecimento do crime não leva ao castigo.
Perceber o quanto há de autobiográfico na narradora de "Azul e Dura" (uma mulher dilacerada entre lembranças da infância idílica e o mal-estar com o cinismo reinante) não desmerece em nada o trabalho da escritora: um bom texto sempre nos indica o lugar de onde contempla o mundo.
Por isso, ao criar em "Não Falei" um narrador masculino, vivendo conflitos que remontam a uma época em que a autora era criança, Bracher continua a falar de si de um modo que diz respeito a todos nós -pois o livro disseca o "vazio agressivo" das nossas relações sociais, esse ressentimento em relação a utopias que, de tanto não se realizarem, acabaram por nos conciliar com o naufrágio.
Seu protagonista é um professor aposentado que, prestes a se mudar para o interior (sua velha casa será demolida pela especulação imobiliária), se vê diante de duas oportunidades de recapitular o passado: de um lado, recebe os originais de um romance memorialístico feito pelo irmão; de outro, responde a perguntas de uma ex-aluna que está escrevendo um romance sobre os anos 60 e 70.

Privado e coletivo
As semelhanças entre a autora e a personagem da ex-aluna (que também era criança nos anos de chumbo do regime militar) são óbvias, mas seu deslocamento para a periferia da trama é apenas estratégico. Da mesma maneira, o entrecho dramático que está no coração do livro estabelece nexos amplos entre vida privada e história coletiva.
Após envolvimento indireto com a luta armada, o narrador é preso e torturado; ao ser libertado, é acusado de ter entregue o cunhado militante aos órgãos de repressão, tendo de conviver com o espectro de uma culpa à qual se somam o suicídio da sogra e a morte da mulher (que se deixa morrer de pneumonia e inanição no exílio).
Essa culpa reverbera ao longo de todo o romance (como indica o próprio título). Ao ler os originais do irmão e pensar nas respostas à ex-aluna, o narrador tenta articular sua vida familiar miúda (as rodas de chorinho em que o pai tocava flauta; o café no balcão da padaria; os "semideuses" da seleção de Pelé) com as aulas de educação moral e cívica vigiadas pelos censores, as campanhas patrióticas dos militares, o ideário esquerdista dos anos 70 -enfim, projetos cujo fracasso reforça a melancolia do lirismo ligeiro de nosso imaginário nacional.
"Não Falei" muitas vezes resvala -de modo intencional, porém enfadonho- no tom de relatórios partidários e na retórica dos "papers" acadêmicos. Mas a monotonia discursiva do narrador está ali para deixar aflorar, como um grito, as manifestações de um trauma que não é apenas pessoal ou histórico: "Deixamos isso acontecer, acontecemos esse horror. (...) Talvez jamais alguém tenha me considerado um traidor, a não ser eu mesmo", diz esse narrador que, assim como a protagonista de "Azul e Dura", assume uma culpa que foi essencializada pela barbárie brasileira.


Não Falei
   
Autor: Beatriz Brache
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (152 págs.)



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