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RODAPÉ
Memórias da barbárie brasileira
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
"Não Falei", segundo romance de Beatriz Bracher, tem um impacto afetivo
muito menor do que "Azul e Dura", seu livro de estréia. E, por isso
mesmo, consegue articular de
modo mais minucioso e distanciado o tema que perpassa as duas
narrativas: o "gosto amargo de
derrota e sujeira" que identifica
sucessivas gerações da história recente do Brasil.
"Azul e Dura" -livro cuja importância em nossa literatura
contemporânea ainda está por ser
dimensionada- é um "mea culpa" com viés autobiográfico. O
evento que deflagra a narrativa é
ficcional: uma jovem mãe da elite
paulistana atropela a cadeira de
rodas de uma deficiente mental
diante da escola em que vai buscar os filhos com seu carro importado.
A partir daí, porém, Bracher
empreende uma devastadora desconstrução da boa consciência ostentada pelos filhos esclarecidos
do "milagre econômico", descobre por trás das crises de pânico e
das ressacas de suas personagens
o mandamento capital dessa "irmandade apátrida" da riqueza
globalizada: o "único pecado é o
fracasso", como fica patente no
processo sofrido pela protagonista, em que o reconhecimento do
crime não leva ao castigo.
Perceber o quanto há de autobiográfico na narradora de "Azul
e Dura" (uma mulher dilacerada
entre lembranças da infância idílica e o mal-estar com o cinismo
reinante) não desmerece em nada
o trabalho da escritora: um bom
texto sempre nos indica o lugar de
onde contempla o mundo.
Por isso, ao criar em "Não Falei"
um narrador masculino, vivendo
conflitos que remontam a uma
época em que a autora era criança, Bracher continua a falar de si
de um modo que diz respeito a todos nós -pois o livro disseca o
"vazio agressivo" das nossas relações sociais, esse ressentimento
em relação a utopias que, de tanto
não se realizarem, acabaram por
nos conciliar com o naufrágio.
Seu protagonista é um professor aposentado que, prestes a se
mudar para o interior (sua velha
casa será demolida pela especulação imobiliária), se vê diante de
duas oportunidades de recapitular o passado: de um lado, recebe
os originais de um romance memorialístico feito pelo irmão; de
outro, responde a perguntas de
uma ex-aluna que está escrevendo um romance sobre os anos 60 e
70.
Privado e coletivo
As semelhanças entre a autora e
a personagem da ex-aluna (que
também era criança nos anos de
chumbo do regime militar) são
óbvias, mas seu deslocamento para a periferia da trama é apenas
estratégico. Da mesma maneira, o
entrecho dramático que está no
coração do livro estabelece nexos
amplos entre vida privada e história coletiva.
Após envolvimento indireto
com a luta armada, o narrador é
preso e torturado; ao ser libertado, é acusado de ter entregue o
cunhado militante aos órgãos de
repressão, tendo de conviver com
o espectro de uma culpa à qual se
somam o suicídio da sogra e a
morte da mulher (que se deixa
morrer de pneumonia e inanição
no exílio).
Essa culpa reverbera ao longo
de todo o romance (como indica
o próprio título). Ao ler os originais do irmão e pensar nas respostas à ex-aluna, o narrador tenta articular sua vida familiar miúda (as rodas de chorinho em que o
pai tocava flauta; o café no balcão
da padaria; os "semideuses" da
seleção de Pelé) com as aulas de
educação moral e cívica vigiadas
pelos censores, as campanhas patrióticas dos militares, o ideário
esquerdista dos anos 70 -enfim,
projetos cujo fracasso reforça a
melancolia do lirismo ligeiro de
nosso imaginário nacional.
"Não Falei" muitas vezes resvala
-de modo intencional, porém
enfadonho- no tom de relatórios partidários e na retórica dos
"papers" acadêmicos. Mas a monotonia discursiva do narrador
está ali para deixar aflorar, como
um grito, as manifestações de um
trauma que não é apenas pessoal
ou histórico: "Deixamos isso
acontecer, acontecemos esse horror. (...) Talvez jamais alguém tenha me considerado um traidor, a
não ser eu mesmo", diz esse narrador que, assim como a protagonista de "Azul e Dura", assume
uma culpa que foi essencializada
pela barbárie brasileira.
Não Falei
Autor: Beatriz Brache
Editora: 34
Quanto: R$ 25 (152 págs.)
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