|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
DRAUZIO VARELLA
Gravidez indesejada e violência urbana
A irresponsabilidade
brasileira diante das mulheres pobres que engravidam por
acidente é caso de polícia literalmente.
O planejamento familiar no
Brasil é inacessível aos que mais
necessitam dele. Os casais da classe média e os mais ricos, que podem criar os filhos por conta própria, têm acesso garantido a preservativos de qualidade, pílula,
injeções e adesivos anticoncepcionais, DIU, laqueadura, vasectomia e, em caso de falha, ao abortamento; porque, deixando a falsidade de lado, estamos cansados
de saber que aborto no Brasil só é
proibido para a mulher que não
tem dinheiro.
Há pouco tempo, afirmei numa
entrevista para o jornal "O Globo" que a falta de planejamento
familiar era uma das causas mais
importantes da explosão de violência urbana ocorrida nos últimos 20 anos em nosso país. A afirmação era baseada em minha experiência na Casa de Detenção de
São Paulo: é difícil achar na cadeia um preso criado por pai e
mãe. A maioria é fruto de lares
desfeitos ou que nunca chegaram
a existir. O número daqueles que
têm muitos irmãos, dos que não
conheceram o pai e dos que foram
concebidos por mães solteiras,
ainda adolescentes, é impressionante.
Procurados pelos jornalistas,
um cardeal e uma autoridade do
primeiro escalão federal responderam incisivamente que não
concordavam com essa afirmação. O religioso, porque considerava "muito triste ser filho único",
e que "o ideal seria cada família
brasileira ter cinco filhos". O outro discordava baseado nos dados
que mostravam queda progressiva dos índices de natalidade nos
últimos 20 anos, enquanto a violência em nossas cidades explodia.
Cito essa discussão, porque encerra o nó de nossa paralisia
diante do crescimento populacional insensato que fez o número de
brasileiros saltar dos célebres 90
milhões em ação do ano de 1970
para os 180 milhões atuais: de um
lado, a cúpula da Igreja Católica,
que não aceita sequer o uso da camisinha em plena epidemia de
uma doença sexualmente transmissível como a Aids. De outro, os
responsáveis pelas políticas públicas, que, para fugir da discussão
sobre as taxas inaceitáveis de natalidade da população mais pobre, usam a queda progressiva
dos valores médios dos índices
ocorrida nas últimas décadas. Dizem: cada brasileira tinha seis filhos em 1950; hoje esse número
não chega a três.
É provável que o argumento
ajude a aplacar-lhes a consciência pública, especialmente quando se esquecem de dizer que, enquanto as mulheres de nível universitário hoje têm em média 1,4
filho, as analfabetas têm 4,4.
Há duas semanas, a Folha publicou informações contidas no
banco de dados do município, colhidas no período de 2000 a 2004
pela Fundação Seade. A reportagem nos ajuda a avaliar o potencial explosivo que a falta de acesso aos métodos de contracepção
gera na periferia e nas favelas das
cidades brasileiras.
Se tomarmos os cinco bairros
mais carentes, situados nos limites extremos de São Paulo -Parelheiros, Itaim Paulista, Cidade
Tiradentes, Guaianazes e Perus-, a proporção de habitantes
inferior a 15 anos varia de 30,4%
a 33,4% da população. Esses números estão bem acima da média
da cidade: 24,4%. Representam
mais do que o dobro da porcentagem de crianças encontrada nos
cinco bairros com melhor qualidade de vida.
O grande número de jovens, associado à falta de oferta de trabalho na periferia, fez o nível de desemprego no extremo leste da cidade atingir 23,5% -contra
12,4% no centro da cidade no ano
passado. Ele também explica por
que a probabilidade de um jovem
morrer assassinado na área do
M'Boi Mirim, na zona sul, é 19 vezes maior do que em Pinheiros,
bairro de classe média.
Nem haveria necessidade de
números tão contundentes para
tomarmos consciência da associação de pobreza com falta de
planejamento familiar e violência
urbana: o número de crianças pequenas nas ruas dos bairros mais
violentos fala por si. O de meninas em idade de brincar com boneca aguardando atendimento
nas filas das maternidades públicas também.
Basta passarmos na frente de
qualquer cadeia brasileira em dia
de visita para nos darmos conta
do número de adolescentes com
bebês de colo na fila de entrada.
Todos nós sabemos quanto custa criar um filho. Cada criança
concebida involuntariamente por
casais que não têm condições financeiras para criá-las empobrece ainda mais a família e o país,
obrigado a investir em escolas,
postos de saúde, hospitais, merenda escolar, vacinas, medicamentos, habitação, Fome Zero e, mais
tarde, na construção de cadeias
para trancar os malcomportados.
O que o pensamento religioso
medieval e as autoridades públicas que se acovardam diante dele
fingem não perceber é que, ao negar o acesso dos casais mais pobres aos métodos modernos de
contracepção, comprometemos o
futuro do país, porque aprofundamos perversamente a desigualdade social e criamos um caldo de
cultura que contém os três fatores
de risco indispensáveis à explosão
da violência urbana: crianças
maltratadas na primeira infância
e descuidadas na adolescência,
que vão conviver com pares violentos quando crescerem.
Texto Anterior: Literatura: Debutante de 70 anos estréia com livro de contos originais e ousados da Mooca, cenário de conto de Garozzo Próximo Texto: Ato de amor e de morte Índice
|