São Paulo, domingo, 04 de setembro de 2005

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Microssérie "Hoje É Dia de Maria" volta ao ar em outubro em segunda(e última) temporada

O próximo dia de Maria

DANIEL CASTRO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Parte do programa de TV mais surpreendente dos últimos anos sai do lixo que é produzido no Projac, a central de estúdios da Globo, no Rio, onde são feitas as novelas mais vistas do país.
A segunda temporada da microssérie "Hoje É Dia de Maria", que será exibida entre 11 e 15 de outubro, está se alimentando desse lixo e transformando-o em luxuosos objetos cenográficos e peças de figurino. Uma cidade feita de papel, papelão e plástico foi toda construída com material recolhido no Projac. Um boneco gigante está sendo montado com sobras de metais do complexo.
"Nos foi autorizado pegar o lixo da TV Globo", reclama Luiz Fernando Carvalho, co-autor (com o dramaturgo Luís Alberto de Abreu) e diretor de "Hoje É Dia de Maria", que levou dez anos para sair do papel. "Esse programa não tem um grande orçamento. No cinema, seria um filme de baixo orçamento, que são os que mais avançam em linguagem."
Carvalho optou por economizar com cenários (mas sem empobrecer o resultado final) e investir essa verba na preparação dos atores, que passaram dois meses tendo aulas de música e de expressão corporal (e até palestra com psiquiatra junguiano e técnicas de aikidô). Carvalho afirma que cada um dos cinco capítulos de "Hoje É Dia de Maria 2" custará o mesmo que um episódio de programa fixo da emissora -algo entre R$ 140 mil e R$ 200 mil.
O uso de material reciclado não é uma novidade em "Hoje É Dia de Maria". A primeira temporada, apresentada em janeiro, já foi gravada dentro de uma bolha de 2.300 m2, que um dia serviu de estrutura de palco do festival Rock'n'Rio e que, vista de fora, parece um circo.
A bolha, montada do outro lado da rua em que fica o Projac, continua sendo o "estúdio" de "Hoje É Dia de Maria". É lá que a microssérie está sendo gravada, desde o dia 15. As gravações só devem acabar no próximo dia 20. São sete horas por dia, seis dias por semana. É tempo demais para uma série de TV de apenas cinco episódios de 40 minutos cada.
A localização da bolha, fora do Projac, é simbólica. Iniciado no cinema, com formação em literatura e arquitetura, Carvalho (diretor do longa "Lavoura Arcaica") é o menos televisivo dos diretores da Globo. Normal então que trabalhe do outro lado da rua.
Na bolha, ao contrário dos estúdios das novelas, não há ar-condicionado (o que leva os técnicos da microssérie a usarem produtos especiais nas caracterizações). Em volta dela, há muita sucata. Construções de madeira do canteiro de obras do Projac viraram oficinas para os artistas plásticos e figurinistas de "Hoje É Dia Maria". Servem também de depósito para o lixo recolhido por Carvalho.
Dentro da bolha ficam todos os elementos cenográficos da microssérie. Até ontem, abrigava um mar (feito com 20 telas presas a estruturas com alavancas giratórias que fazem o movimento das ondas, inspirado em telas de Paul Klee) e uma cidade de papel com prédios de oito metros de altura, suas ruas e até um teatro e uma rodoviária. Ao ver pela TV, tem-se a impressão de que o ambiente é muito maior. O efeito se deve a um ciclorama, um enorme painel de 10m de altura e 170m de largura que recobre internamente toda a bolha, em 360. Esse ciclorama é pintado à mão. As pinturas mudam conforme a paisagem ambientada. Em "Maria 1", eram desertos e campos. Em "Maria 2", será uma cidade em guerra, assumidamente inspirada no filme "Metrópolis", de Fritz Lang.
Mas tudo isso foi destruído ontem. A metrópole de Mariazinha será arrasada pela guerra. Um novo cenário será montado no lugar.

A travessia
Em "Maria 1", a menina Maria (Carolina Oliveira) abandona a casa do pai (Osmar Prado), onde era explorada pela madrasta (Fernanda Montenegro), em busca das "franjas do mar". "Maria 2" começa onde "Maria 1" terminou, no mar, e conta a saga de sua volta para casa. Hipnotizada pelo oceano, Mariazinha é jogada por uma onda para uma terra distante, onde vive um gigante. Acreditando que tudo não passa de um pesadelo do gigante, tenta acordá-lo, mas cai dentro da boca dele e acaba no lixão de uma metrópole.
A boca do gigante e tudo o que tem dentro dela, diz Luiz Fernando Carvalho, são "metáfora do mundo como ele é hoje, das grandes corporações, da burocracia".
"Hoje É Dia de Maria 2", avisa Carvalho, terá muito mais crítica social do que "Maria 1" -que abordava temas como trabalho infantil. Os Asmodeus (demônios) que, em "Maria 1", tentavam e desviavam Mariazinha de seu caminho, agora personificam a guerra, o consumismo.
O elenco é idêntico, mas apenas Carolina Oliveira faz o mesmo personagem. Rodrigo Santoro não é mais Amado. Incorpora dom Chico Chicote, morador de rua, poeta revolucionário que ama Alonsa (Letícia Sabatella) e acolhe Mariazinha na cidade.
"A gente continua com arquétipos semelhantes. Amado trabalhava com o arquétipo do amor. Chico trabalha com o da esperança. Ele não é um Dom Quixote. Tem um pouco de todos nós. É corajoso e muito lúcido, louco em alguns momentos", diz Santoro, que emagreceu dez quilos e usará roupas inspiradas nas obras de Arthur Bispo do Rosário (um interno de hospital psiquitriáco que produzia mantos hoje reconhecidos como obras de arte).
"Alonsa é o arquétipo do feminino. Se veste de forma criativa, colorida. Todos os personagens aqui têm um pé na infância", define Letícia Sabatella, que vestirá um sutiã feito de papel de bala com tampinhas e pedrinhas.

Inovação
"Hoje É Dia de Maria 2" promete ser mais inovadora do que "Maria 1", que, entre outras experimentações, usou técnicas de animação. Carvalho apelará ainda mais a esse recurso.
Por exemplo, a destruição da metrópole em guerra será toda feita em "stop motion" -animação com objetos. Toda a destruição será gravada (por uma câmera de alta definição). Na edição, parte dos quadros que compõe a imagem em movimento como a vemos será descartada, dando um efeito de seqüência picotada. O tráfego de veículos pela cidade também será em "stop motion".
Todos os figurantes serão bonecos. Foram confeccionadas 120 cabeças, com diferentes expressões (algumas com movimentos de boca e olhos), que se revezarão sobre 15 corpos articuláveis de madeira e vidro. Em movimento, "atuarão" em "stop motion".
Mas a maior novidade de "Maria 2" será sua narrativa, musical. As falas fluirão em poesia cantada ou quase cantada. "A música foi importante para a gente não repetir a linguagem. É também para acabar com esse preconceito de que ator brasileiro não sabe cantar", diz Carvalho.
Assim, em "Maria 2", além de composições de Villa-Lobos, haverá mais de 50 novas canções, compostas pelo produtor Tim Rescala, entoadas pelo elenco.
"Hoje É Dia de Maria", segundo Carvalho, continua sendo uma fábula baseada nos contos populares, transmitidos de forma oral e compilados por Câmara Cascudo. É, portanto, popular e erudita. Mas, agora, "Maria" é mais globalizada, ou multifacetada. Há referências a escritores e artistas plásticos contemporâneos e do mundo todo. "Queremos falar do nosso cotidiano", explica.
Carvalho recusa o rótulo de "obra de arte" para a artesanal "Hoje É Dia de Maria". "É televisão", afirma. Fernanda Montenegro discorda um pouco: "Esse é um trabalho alternativo. Do lado de cá, na bolha, criou-se um método de trabalho que aproxima a TV do teatro e do cinema, com as oficinas. Não é industrial".
A segunda "jornada" (Carvalho prefere esse termo a temporada) de "Hoje É Dia de Maria" pode se encerrar no último dia de Maria. "Não há a menor possibilidade [de uma terceira "jornada']. A minha Maria é a Carolina. E, daqui a um ano, ela estará crescida", diz.


O jornalista Daniel Castro viajou a convite da TV Globo

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