|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Microssérie "Hoje É Dia de Maria" volta ao ar em outubro em segunda(e última) temporada
O próximo dia de Maria
DANIEL CASTRO
ENVIADO ESPECIAL AO RIO
Parte do programa de TV mais
surpreendente dos últimos anos
sai do lixo que é produzido no
Projac, a central de estúdios da
Globo, no Rio, onde são feitas as
novelas mais vistas do país.
A segunda temporada da microssérie "Hoje É Dia de Maria",
que será exibida entre 11 e 15 de
outubro, está se alimentando desse lixo e transformando-o em luxuosos objetos cenográficos e peças de figurino. Uma cidade feita
de papel, papelão e plástico foi toda construída com material recolhido no Projac. Um boneco gigante está sendo montado com
sobras de metais do complexo.
"Nos foi autorizado pegar o lixo
da TV Globo", reclama Luiz Fernando Carvalho, co-autor (com o
dramaturgo Luís Alberto de
Abreu) e diretor de "Hoje É Dia de
Maria", que levou dez anos para
sair do papel. "Esse programa não
tem um grande orçamento. No cinema, seria um filme de baixo orçamento, que são os que mais
avançam em linguagem."
Carvalho optou por economizar
com cenários (mas sem empobrecer o resultado final) e investir essa verba na preparação dos atores,
que passaram dois meses tendo
aulas de música e de expressão
corporal (e até palestra com psiquiatra junguiano e técnicas de aikidô). Carvalho afirma que cada
um dos cinco capítulos de "Hoje É
Dia de Maria 2" custará o mesmo
que um episódio de programa fixo da emissora -algo entre R$
140 mil e R$ 200 mil.
O uso de material reciclado não
é uma novidade em "Hoje É Dia
de Maria". A primeira temporada, apresentada em janeiro, já foi
gravada dentro de uma bolha de
2.300 m2, que um dia serviu de estrutura de palco do festival
Rock'n'Rio e que, vista de fora,
parece um circo.
A bolha, montada do outro lado
da rua em que fica o Projac, continua sendo o "estúdio" de "Hoje É
Dia de Maria". É lá que a microssérie está sendo gravada, desde o
dia 15. As gravações só devem
acabar no próximo dia 20. São sete horas por dia, seis dias por semana. É tempo demais para uma
série de TV de apenas cinco episódios de 40 minutos cada.
A localização da bolha, fora do
Projac, é simbólica. Iniciado no
cinema, com formação em literatura e arquitetura, Carvalho (diretor do longa "Lavoura Arcaica") é
o menos televisivo dos diretores
da Globo. Normal então que trabalhe do outro lado da rua.
Na bolha, ao contrário dos estúdios das novelas, não há ar-condicionado (o que leva os técnicos da
microssérie a usarem produtos
especiais nas caracterizações). Em
volta dela, há muita sucata. Construções de madeira do canteiro de
obras do Projac viraram oficinas
para os artistas plásticos e figurinistas de "Hoje É Dia Maria". Servem também de depósito para o
lixo recolhido por Carvalho.
Dentro da bolha ficam todos os
elementos cenográficos da microssérie. Até ontem, abrigava
um mar (feito com 20 telas presas
a estruturas com alavancas giratórias que fazem o movimento das
ondas, inspirado em telas de Paul
Klee) e uma cidade de papel com
prédios de oito metros de altura,
suas ruas e até um teatro e uma
rodoviária. Ao ver pela TV, tem-se a impressão de que o ambiente
é muito maior. O efeito se deve a
um ciclorama, um enorme painel
de 10m de altura e 170m de largura que recobre internamente toda
a bolha, em 360. Esse ciclorama é
pintado à mão. As pinturas mudam conforme a paisagem ambientada. Em "Maria 1", eram desertos e campos. Em "Maria 2",
será uma cidade em guerra, assumidamente inspirada no filme
"Metrópolis", de Fritz Lang.
Mas tudo isso foi destruído ontem. A metrópole de Mariazinha
será arrasada pela guerra. Um novo cenário será montado no lugar.
A travessia
Em "Maria 1", a menina Maria
(Carolina Oliveira) abandona a
casa do pai (Osmar Prado), onde
era explorada pela madrasta (Fernanda Montenegro), em busca
das "franjas do mar". "Maria 2"
começa onde "Maria 1" terminou,
no mar, e conta a saga de sua volta
para casa. Hipnotizada pelo oceano, Mariazinha é jogada por uma
onda para uma terra distante, onde vive um gigante. Acreditando
que tudo não passa de um pesadelo do gigante, tenta acordá-lo,
mas cai dentro da boca dele e acaba no lixão de uma metrópole.
A boca do gigante e tudo o que
tem dentro dela, diz Luiz Fernando Carvalho, são "metáfora do
mundo como ele é hoje, das grandes corporações, da burocracia".
"Hoje É Dia de Maria 2", avisa
Carvalho, terá muito mais crítica
social do que "Maria 1" -que
abordava temas como trabalho
infantil. Os Asmodeus (demônios) que, em "Maria 1", tentavam
e desviavam Mariazinha de seu
caminho, agora personificam a
guerra, o consumismo.
O elenco é idêntico, mas apenas
Carolina Oliveira faz o mesmo
personagem. Rodrigo Santoro
não é mais Amado. Incorpora
dom Chico Chicote, morador de
rua, poeta revolucionário que
ama Alonsa (Letícia Sabatella) e
acolhe Mariazinha na cidade.
"A gente continua com arquétipos semelhantes. Amado trabalhava com o arquétipo do amor.
Chico trabalha com o da esperança. Ele não é um Dom Quixote.
Tem um pouco de todos nós. É
corajoso e muito lúcido, louco em
alguns momentos", diz Santoro,
que emagreceu dez quilos e usará
roupas inspiradas nas obras de
Arthur Bispo do Rosário (um interno de hospital psiquitriáco que
produzia mantos hoje reconhecidos como obras de arte).
"Alonsa é o arquétipo do feminino. Se veste de forma criativa,
colorida. Todos os personagens
aqui têm um pé na infância", define Letícia Sabatella, que vestirá
um sutiã feito de papel de bala
com tampinhas e pedrinhas.
Inovação
"Hoje É Dia de Maria 2" promete ser mais inovadora do que
"Maria 1", que, entre outras experimentações, usou técnicas de
animação. Carvalho apelará ainda mais a esse recurso.
Por exemplo, a destruição da
metrópole em guerra será toda
feita em "stop motion" -animação com objetos. Toda a destruição será gravada (por uma câmera de alta definição). Na edição,
parte dos quadros que compõe a
imagem em movimento como a
vemos será descartada, dando um
efeito de seqüência picotada. O
tráfego de veículos pela cidade
também será em "stop motion".
Todos os figurantes serão bonecos. Foram confeccionadas 120
cabeças, com diferentes expressões (algumas com movimentos
de boca e olhos), que se revezarão
sobre 15 corpos articuláveis de
madeira e vidro. Em movimento,
"atuarão" em "stop motion".
Mas a maior novidade de "Maria 2" será sua narrativa, musical.
As falas fluirão em poesia cantada
ou quase cantada. "A música foi
importante para a gente não repetir a linguagem. É também para
acabar com esse preconceito de
que ator brasileiro não sabe cantar", diz Carvalho.
Assim, em "Maria 2", além de
composições de Villa-Lobos, haverá mais de 50 novas canções,
compostas pelo produtor Tim
Rescala, entoadas pelo elenco.
"Hoje É Dia de Maria", segundo
Carvalho, continua sendo uma fábula baseada nos contos populares, transmitidos de forma oral e
compilados por Câmara Cascudo. É, portanto, popular e erudita.
Mas, agora, "Maria" é mais globalizada, ou multifacetada. Há referências a escritores e artistas plásticos contemporâneos e do mundo todo. "Queremos falar do nosso cotidiano", explica.
Carvalho recusa o rótulo de
"obra de arte" para a artesanal
"Hoje É Dia de Maria". "É televisão", afirma. Fernanda Montenegro discorda um pouco: "Esse é
um trabalho alternativo. Do lado
de cá, na bolha, criou-se um método de trabalho que aproxima a
TV do teatro e do cinema, com as
oficinas. Não é industrial".
A segunda "jornada" (Carvalho
prefere esse termo a temporada)
de "Hoje É Dia de Maria" pode se
encerrar no último dia de Maria.
"Não há a menor possibilidade
[de uma terceira "jornada']. A minha Maria é a Carolina. E, daqui a
um ano, ela estará crescida", diz.
O jornalista Daniel Castro viajou a convite da TV Globo
Texto Anterior: TV aberta: "Beleza Roubada" faz conto da entrada na vida Próximo Texto: Música: Minha vida não é exemplo, diz Keith Richards Índice
|