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O Miguel Ângelo dos botequins
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
Não faz muito, grande parte
dos bares, botequins e padarias
do Rio eram decorados por um
pintor chamado Nilton Bravo.
Em termos de comunicação,
era na época o artista mais
consumido do Brasil.
Suas paisagens podiam ser
admiradas por milhares de
pessoas, todos os dias. Segundo
os donos dos botequins, os quadros de Nilton Bravo ajudavam o varejo: olhando a paisagem bucólica e plácida, o freguês sentia vontade de comer
outro sanduíche e beber mais
um chope.
Herdeiro de nobre tradição
pictórica, ele repetia Miguel
Ângelo passando a vida pendurado em andaimes, cobrindo paredes com cores e formas.
O botequim era a sua Capela
Sistina. Em vez do papa, quem
lhe dava ordens era o dono do
bar: "Bota um barquinho ali
naquele canto". Ele botava.
Trabalhando a metro quadrado, seus quadros pregavam
a doçura das tardes, a quietude das águas. Por sua ternura,
era o Rubem Braga da paleta,
o Vinícius de Moraes do pincel.
Não havia carioca que não tivesse visto um quadro de Nilton Bravo. Suas paisagens
eram, em essência, as mesmas:
um rio cortando duas margens
floridas, uma casinha rústica
com a fumaça saindo pela chaminé, um céu azul bordado de
nuvens diáfanas.
O que chamava a atenção, no
primeiro instante, era a assinatura do pintor, acompanhada do número do seu telefone.
Pelo prefixo, adivinhava-se
que morava no profundo subúrbio, onde ninguém sabia
quem era Miguel Ângelo, Rubem Braga e Vinícius de Moraes.
Foi de tanto me embevecer
diante de seus quadros que tomei coragem e anotei o número daquele telefone. Localizei-
o com dificuldade, pois o artista estava sempre trabalhando,
ora em Cascadura, ora na Gávea. Como os mestres da Renascença, trabalho não lhe faltava, nem casa nem comida.
Nascido de uma família de
pintores, a dinastia dos Bravos
espalhara sua assinatura em
milhares de paredes da cidade.
As dificuldades para se proceder à exegese de sua obra começavam por aí, pois havia
três Bravos misturados num
só. Acreditei -e acreditei certo-que o Patrimônio Histórico teria dificuldades, mais tarde, em decupar o que era de
um e de outro, tal como ocorre
hoje com alguns quadros de
Leonardo da Vinci, em que há
dedo de Andrea Verrocchio
-em cuja "bottega" o futuro
autor da Mona Lisa aprendera
a pintar.
Para ficar num exemplo doméstico: a mesma dificuldade
em estabelecer se determinada
obra é do Aleijadinho ou de seu
escravo Maurício.
Procurando Nilton Bravo, depois de muitos desencontros e
cafés requentados em mil botequins da cidade, fui dar no
Méier. Morava ele numa sólida
casa, decorada a seu gosto, e tudo ali fora feito por ele, desde o
projeto original até a pintura
dos móveis. Vivia bem -pois
seu ofício dava para o pão, a
manteiga e a poupança.
Era, disparado, o artista plástico brasileiro que mais ganhava naquela ocasião. Em moeda
circulante na época, cobrava o
equivalente a US$ 100 o metro
quadrado e havia pintado, em
seus 31 anos de vida, o equivalente a duas vezes e meia a avenida Presidente Vargas em toda a sua extensão e largura.
A obra-prima de Bravo tinha
sido um estupendo painel -repetido em vários bares da cidade- que consistia numa panorâmica que nem Eiseinstein teria coragem de montar. Um
português bem-sucedido no ramo da panificação, inventor de
um bolo complicado que misturava linguiça com frutas cristalizadas, queria homenagear o
Brasil e Portugal. Pediu que na
parede principal de sua padaria, cujo nome óbvio era "Panificação Luso-brasileira", figurassem Brasília, Rio, São Paulo,
Lisboa e a cidade do Porto.
Bravo juntou tudo numa única perspectiva, utilizando-se da
água como elemento aglutinador da paisagem: e sucessivamente o lago de Brasília, o rio
Tietê, a baía de Guanabara, o
Tejo, o Douro e o oceano Atlântico.
Achei que o Walt Disney bolara aquele passeio de barco pelo
mundo todo, sem sair da Disneyworld, depois que vira esse
quadro do Bravo. Aproveitando a água dos rios e do oceano,
ele colocara nas margens o Palácio da Alvorada, o museu do
Ipiranga, o Corcovado, a torre
de Belém e os vinhedos do Porto. Olhando tudo em conjunto,
fazia um formidável sentido visual.
Outro capolavoro de Bravo
era a estranhíssima perspectiva
do Rio de Janeiro, onde o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Pedra da Gávea, o Maracanã e a
Cascatinha da Tijuca estavam
em fila, de um lado só da paisagem, como uma muralha de
pontos turísticos. No centro de
tudo, ovante, com a bandeira
lusitana tremulando, o navio
Santa Maria singrava as águas
de Copacabana.
A arte, como a vida, tem dado
muitas voltas. Deixei Nilton
Bravo em Madureira, combinando detalhes com o dono de
uma casa de móveis. Comprei
cigarros num bar do outro lado
da rua, onde uma paisagem do
mesmo Bravo brilhava sob a luz
de um neon vermelho.
Voltei para a cidade pensando como Machado de Assis: tudo pode acontecer. Não ficarei
admirado se, no dia do Juízo
Final, ficar sabendo que Nilton
Bravo foi o maior artista brasileiro de nosso século.
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