São Paulo, sexta, 4 de setembro de 1998

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O Miguel Ângelo dos botequins

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

Não faz muito, grande parte dos bares, botequins e padarias do Rio eram decorados por um pintor chamado Nilton Bravo. Em termos de comunicação, era na época o artista mais consumido do Brasil.
Suas paisagens podiam ser admiradas por milhares de pessoas, todos os dias. Segundo os donos dos botequins, os quadros de Nilton Bravo ajudavam o varejo: olhando a paisagem bucólica e plácida, o freguês sentia vontade de comer outro sanduíche e beber mais um chope.
Herdeiro de nobre tradição pictórica, ele repetia Miguel Ângelo passando a vida pendurado em andaimes, cobrindo paredes com cores e formas. O botequim era a sua Capela Sistina. Em vez do papa, quem lhe dava ordens era o dono do bar: "Bota um barquinho ali naquele canto". Ele botava.
Trabalhando a metro quadrado, seus quadros pregavam a doçura das tardes, a quietude das águas. Por sua ternura, era o Rubem Braga da paleta, o Vinícius de Moraes do pincel.
Não havia carioca que não tivesse visto um quadro de Nilton Bravo. Suas paisagens eram, em essência, as mesmas: um rio cortando duas margens floridas, uma casinha rústica com a fumaça saindo pela chaminé, um céu azul bordado de nuvens diáfanas.
O que chamava a atenção, no primeiro instante, era a assinatura do pintor, acompanhada do número do seu telefone. Pelo prefixo, adivinhava-se que morava no profundo subúrbio, onde ninguém sabia quem era Miguel Ângelo, Rubem Braga e Vinícius de Moraes.
Foi de tanto me embevecer diante de seus quadros que tomei coragem e anotei o número daquele telefone. Localizei- o com dificuldade, pois o artista estava sempre trabalhando, ora em Cascadura, ora na Gávea. Como os mestres da Renascença, trabalho não lhe faltava, nem casa nem comida.
Nascido de uma família de pintores, a dinastia dos Bravos espalhara sua assinatura em milhares de paredes da cidade. As dificuldades para se proceder à exegese de sua obra começavam por aí, pois havia três Bravos misturados num só. Acreditei -e acreditei certo-que o Patrimônio Histórico teria dificuldades, mais tarde, em decupar o que era de um e de outro, tal como ocorre hoje com alguns quadros de Leonardo da Vinci, em que há dedo de Andrea Verrocchio -em cuja "bottega" o futuro autor da Mona Lisa aprendera a pintar.
Para ficar num exemplo doméstico: a mesma dificuldade em estabelecer se determinada obra é do Aleijadinho ou de seu escravo Maurício.
Procurando Nilton Bravo, depois de muitos desencontros e cafés requentados em mil botequins da cidade, fui dar no Méier. Morava ele numa sólida casa, decorada a seu gosto, e tudo ali fora feito por ele, desde o projeto original até a pintura dos móveis. Vivia bem -pois seu ofício dava para o pão, a manteiga e a poupança.
Era, disparado, o artista plástico brasileiro que mais ganhava naquela ocasião. Em moeda circulante na época, cobrava o equivalente a US$ 100 o metro quadrado e havia pintado, em seus 31 anos de vida, o equivalente a duas vezes e meia a avenida Presidente Vargas em toda a sua extensão e largura.
A obra-prima de Bravo tinha sido um estupendo painel -repetido em vários bares da cidade- que consistia numa panorâmica que nem Eiseinstein teria coragem de montar. Um português bem-sucedido no ramo da panificação, inventor de um bolo complicado que misturava linguiça com frutas cristalizadas, queria homenagear o Brasil e Portugal. Pediu que na parede principal de sua padaria, cujo nome óbvio era "Panificação Luso-brasileira", figurassem Brasília, Rio, São Paulo, Lisboa e a cidade do Porto.
Bravo juntou tudo numa única perspectiva, utilizando-se da água como elemento aglutinador da paisagem: e sucessivamente o lago de Brasília, o rio Tietê, a baía de Guanabara, o Tejo, o Douro e o oceano Atlântico.
Achei que o Walt Disney bolara aquele passeio de barco pelo mundo todo, sem sair da Disneyworld, depois que vira esse quadro do Bravo. Aproveitando a água dos rios e do oceano, ele colocara nas margens o Palácio da Alvorada, o museu do Ipiranga, o Corcovado, a torre de Belém e os vinhedos do Porto. Olhando tudo em conjunto, fazia um formidável sentido visual.
Outro capolavoro de Bravo era a estranhíssima perspectiva do Rio de Janeiro, onde o Corcovado, o Pão de Açúcar, a Pedra da Gávea, o Maracanã e a Cascatinha da Tijuca estavam em fila, de um lado só da paisagem, como uma muralha de pontos turísticos. No centro de tudo, ovante, com a bandeira lusitana tremulando, o navio Santa Maria singrava as águas de Copacabana.
A arte, como a vida, tem dado muitas voltas. Deixei Nilton Bravo em Madureira, combinando detalhes com o dono de uma casa de móveis. Comprei cigarros num bar do outro lado da rua, onde uma paisagem do mesmo Bravo brilhava sob a luz de um neon vermelho.
Voltei para a cidade pensando como Machado de Assis: tudo pode acontecer. Não ficarei admirado se, no dia do Juízo Final, ficar sabendo que Nilton Bravo foi o maior artista brasileiro de nosso século.



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