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São Paulo, sábado, 04 de outubro de 2003

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CRÍTICA

Personagem busca belo perene no amor e na arte em romance que teve Proust como fã

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

O fã historicamente mais notório de "A Bem-Amada" é Marcel Proust (1871-1922). Ele fez menção ao romance do escritor inglês Thomas Hardy (1840-1928) em "A Prisioneira" e ainda o elogiou em duas cartas.
Após concluir a leitura do livro, disse numa delas: "Acabo de ler uma coisa muito bonita que, infelizmente, se parece um pouco (mas mil vezes melhor) com as coisas que faço".
Há cenas no romance de Hardy que lembram Proust, como as das recepções em casa de damas da aristocracia londrina -onde temos vislumbres de decadência, superficialidade e polidez artificial-, ou o momento em que uma velha senhora confessa que parte de sua juventude fora conservada por meio de "artifícios embelezadores".
Mas o ponto de vista de Hardy, além de ser (ao menos nas primeiras das cenas aludidas) mais engraçado e satírico do que o de Proust, também representa o olhar do forasteiro. Tanto o escritor quanto o protagonista de seu livro, Jocelyn Pierston, são oriundos do litoral sudoeste da Mancha. São jecas em meio à nobreza supostamente cosmopolita.
Pierston é um escultor originário de uma minúscula vila da antiga região romana de Wessex. O lugarejo rochoso, onde existem "apenas meia dúzia de sobrenomes", situa-se numa península que sobrevive, principalmente, do extrativismo mineral. O pai de Pierston, por exemplo, sustentou a família com uma pedreira.
Embora a matéria do romance não seja, portanto, exatamente proustiana, podemos dizer que o elemento que sustenta a narrativa, e que está por trás da grande discussão deflagrada por ela, é caro ao escritor francês: o tempo. "A Bem-Amada" acompanha a trajetória do escultor, por meio de três recortes temporais: aos 20, aos 40 e aos 60 anos.
Em cada um desses momentos, vemos o artista buscar o amor, ou antes, a bem-amada, no corpo de diferentes mulheres. Como ele explica, a bem-amada é um ideal que pode "encarnar" numa mulher e também abandoná-la, ocupando em seguida o corpo de outra. Numa ironia do destino, o escultor vai sucessivamente perseguindo esse ideal, sem nunca conseguir obtê-lo, em três gerações de uma família de sua vila natal.
Avice Caro, 20 anos depois a filha dela e, decorridos mais 20 anos, a neta, são as bem-amadas de Pierston. A coincidência do nome das três, além de sua semelhança física, sugere um sentido de permanência dentro da impermanência da vida. O ideal do amor almejado por ele assemelha-se ao ideal de beleza que Pierston procura atingir com sua arte: suas esculturas, moldadas com a pedra perene de Wessex, desafiam a passagem do tempo.
Em dois fragmentos curtos, são feitas alusões à "pintura popular" da época. No segundo desses trechos, ficamos sabendo que o pintor amigo de Pierston, Alfred Somers, fica rico aderindo à nova moda da pintura de paisagem, com a qual os milionários americanos e ingleses "decoram suas casas". A alusão indireta remete às telas impressionistas inspiradas em William Turner.
O conservadorismo artístico de Pierston faz par com sua predileção por temas clássicos e bíblicos, compartilhada pelo narrador. O próprio Somers associa Pierston aos escultores gregos Praxíteles e Lisipo. A escolha da antiga locação romana (Wessex) para designar a região natal do escultor reforça a relação clássica.
Para Pierston, a arte é eterna, constante, acima das modas estéticas e alheia ao esfacelamento temporal. O embate entre a permanência da arte e a impermanência do humano, que anima também "O Retrato de Dorian Gray", de Oscar Wilde, é visto, em "A Bem-Amada", com tintas igualmente negras. No final, o escultor percebe a falácia que o fazia buscar um ideal artístico e amoroso fadado ao fracasso.
A epígrafe inicial, de Shelley, dá a dica: "Forma única de muitos nomes..." ("One shape of many names..."), diz o poeta. O verso aludiria à forma perfeita da musa, que o artista anseia alcançar, na vida e na arte. Em sua procura pelo belo, que nunca envelhece, ele se mantém anacronicamente jovem, como insinuam as partições do romance ("Um jovem de 20 anos", "Um jovem de 40 anos" e "Um jovem de 60 anos"), até que o peso dos anos e as desilusões o obriguem a encarar a própria mortalidade.
Mas a frase de Shelley, como lembram em nota os tradutores, foi extraída do canto primeiro do poema "The Revolt of Islam". Alude ao espírito do mal, que durante a história encarna em diferentes tiranos. A arte, bem como a paixão que a inspira, cedo ou tarde constrange o artista a um cruel ajuste de contas.


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