São Paulo, segunda-feira, 04 de outubro de 2004

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Documentário volta sem cortes impostos à versão de 78

DA REPORTAGEM LOCAL

Para reeditar o filme "Doces Bárbaros", o diretor Jom Tob Azulay empreendeu não só a restauração digital da trilha sonora, como a recuperação de cenas que foram cortadas pela censura militar na versão original.
Na cópia liberada em setembro de 1977 pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, subordinada à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça chefiado por Armando Falcão, mantinham-se as aparições de delegados e promotores, e mesmo grande parte do julgamento de Gilberto Gil.
Cortaram-se detalhes -aqueles em que o artista exprimia sentimentos positivos, relacionados ou não à maconha. Foi vetado, por exemplo, trecho da leitura pelo juiz das declarações do "acusado", quando esse afirmava que "gostava de maconha e que seu uso não lhe fazia mal e nem o levava a fazer o mal" e que "o uso da maconha o auxiliava sensivelmente na introspecção mística".
Em contrapartida, sobreviveu a interpretação dos homens da lei sobre suas palavras, que "podem ter a mesma ressonância rítmica e poética de "Refazenda", do "abacateiro", mas não encontram ressonância na ciência e na experiência humana".
É evidente o sorriso sarcástico que brota do rosto do artista, a partir da menção ao "abacateiro" de sua canção "Refazenda" (75). O semblante se fecha diante da afirmação de que um "ídolo inconteste da juventude não pode fazer co-apologia da droga".
Outras cenas que haviam sido cortadas são de entrevista concedida por Gil, com Chiquinho Azevedo, na clínica psiquiátrica: "A gente não tem medo da verdade, a gente não tem vergonha de nada".
Segundo Azulay, não se pensava na censura na hora de criar. "Deixávamos para pensar na hora de enfrentá-la em Brasília, se não, não saíamos de casa. Só fui me preocupar quando fiz uma sessão em Los Angeles e a [cantora] Flora Purim disse: "Você fez um filme político, vai ter problemas quando voltar ao Brasil"."
Dito e feito. O filme teve que perder aquelas cenas para ser liberado para maiores de 14 anos e receber o carimbo "boa qualidade - livre para exportação". Quando estreou, em meados de 78, teve acolhida positiva, mas não foi tido como político -Caetano já cantava "Odara", Gil entrava na fase de "quanto mais purpurina melhor" ("Realce"); mergulhavam em teores crescentes de ambigüidade, poucos levavam fé no dom politizado dos baianos.
Mas o mundo continuava dando voltas. Uma das canções dos Doces Bárbaros, exposta em show, em disco duplo (lançado ainda em 76 pela Philips, hoje Universal) e em filme, era "O Seu Amor", composta por Gilberto Gil. "O seu amor/ ame-o e deixe-o/ livre para amar/ o seu amor/ ame-o e deixe-o/ ir aonde quiser", eram os versos em que os quatro se revezavam.
Além de crítica comportamental e defesa ao amor hippie, livre, leve e solto, fazia alusão discordante ao slogan ditatorial nacionalista/ufanista de seis anos atrás, o célebre "Brasil, ame-o ou deixe-o", do governo Médici.
"Isso foi proposital, isso foi. Compus pensando no "ame-o ou deixe-o'", diz o hoje ministro que discursa contra monopólios e oligopólios dentro de um governo de colorações neonacionalistas.
"Acho que foi suficientemente compreendido, tive manifestações explícitas de pessoas referindo-se a essa compreensão", diz.
Gil afirma não crer em qualquer relação entre aquela provocação algo cifrada e a nova rodada de perseguição a um artista que já fora exilado pela ditadura em 1969 mas também não descarta a possibilidade de ter atingido o alvo plantado no Planalto Central do Brasil. "Acho que a ditadura percebeu, sim." (PAS)


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