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NINA HORTA
As meninas da Mauritânia
Em região pobre, rico é aquele que tem uma casa, animais e mulher bem alimentada
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SONOLENTA, VEJO num canal pago, francês, um documentário
que logo me acorda. Assunto
interessante. Comecei a prestar
atenção, mas o filme já começara antes, tinha que me contentar em unir
os fragmentos soltos. Passava-se na
Mauritânia, num bairro, ou numa
vila, e as mulheres e as crianças se
juntavam em volta de uma guru que
era tiro e queda para fazer engordar.
Diríamos que era uma personal trainer de gavage, aquela técnica de empanturrar os gansos. Enfia comida
pela goela adentro das adolescentes
casadoiras até que adquiram formas
rotundas.
Chega uma menina de uns 14
anos, esbelta, nada magra como nossas modelos, bonitinha, e escuta um
discurso sobre magreza, que os homens gostam de mulher gorda, que
ela vai ter que casar e não é assim
magrela que vai conseguir noivo.
A menina é submetida, com carinho mas muita disciplina, a beber
leite das vaca e de camelos. Mas, não
é nem no copo, é numa bacia. Ela toma, toma, pára, diz que não agüenta
mais, tem que tomar mais um pouco. Às vezes põe a bacia no chão e bebe como um gatinho. As outras mulheres à sua volta estão enroladas
em panos coloridos, amarram-se,
desamarram-se, adoram aquelas
roupas, se sentem sexy com ela, só
meio rosto aparecendo, puxam os
panos, sorriem, embaralham as contas dos colares nos dedos. Mulher é
igual no mundo inteiro.
Mas uma das mulheres tem uma
aparência de professora da USP e é
esclarecida, ou está esclarecida. Tomou nas mãos a bandeira de proibir
esta gavache da mulheres. Conta
que a filha casou, foi viver longe e
que, quando ela a viu de novo, nem a
reconheceu. A sogra e o genro fizeram dela um porquinha redonda,
que teve um problema de coração.
Desde esse dia ela sai pelas ruas, falando mal do costume de forçar as
mulheres a engordarem. Engraçada
é a reação dos homens, querem bater nela, avançam sobre ela, chamando-a de traidora, irritam-se sobremaneira porque amam as mulheres gordas. O que vai ser deles?
As meninotas que já engordaram
não parecem infelizes. É um costume tão arraigado, como a certa hora
da vida fazer a primeira comunhão,
ou crisma ou batmitsvah.
Chegou a hora e ficam lá cochichando e tendo ataques de riso e se
cobrindo daqui e dali com as roupas
coloridas e lindas.
O cineasta resolve ir ao médico do
lugar, um senhor mais velho, culto.
Uma paciente coberta de panos negros, se deita de costas para o médico, na cama, sem nem afastar os véus
e ele tem que achar seu caminho
através das infinitas pregas para
sentir a barriga dela, que tem um tumor difícil de ser percebido debaixo
das banhas. E confessa que não tem
poderes para mudar o costume arraigado na cabeça dos homens, e explicar que em outros lugares do
mundo o conceito de beleza é outro
e aquela obesidade pode fazer mal às
mulheres. Explica ao cineasta que é
uma região pobre e que rico é aquele
que tem uma casinha, vacas gordas,
tapetes, animais gordos e uma mulher bem alimentada.
Alguém comenta que também,
com tanta roupa, ninguém percebe
se a pessoa está gorda ou não. E a tal
guru da USP diz que com qualquer
"coup de vent", golpe de vento, aparece tudo.
Uma moça é filmada com uma bata transparente e o vento batendo
nas pernas mostra a deformidade, as
coxas em ondas, os pés mal agüentando tanto peso.
Claro que isto serve para muita vã
filosofia. Ou nos mudamos todas para a Mauritânia antes que a guru sabida converta os homens, ou podemos imaginar uma reviravolta em
que um dia, na Mauritânia, todas estejam magrinhas e nós rolando pelas ladeiras, alimentadas de chocolate, aplaudidas pelos homens, eleitas
para comerciais de cerveja, barrigas
cheias de leite grosso e amendoim e
tâmaras e milho.
ninahorta@uol.com.br
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