São Paulo, quinta-feira, 04 de outubro de 2007

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NINA HORTA

As meninas da Mauritânia


Em região pobre, rico é aquele que tem uma casa, animais e mulher bem alimentada

SONOLENTA, VEJO num canal pago, francês, um documentário que logo me acorda. Assunto interessante. Comecei a prestar atenção, mas o filme já começara antes, tinha que me contentar em unir os fragmentos soltos. Passava-se na Mauritânia, num bairro, ou numa vila, e as mulheres e as crianças se juntavam em volta de uma guru que era tiro e queda para fazer engordar. Diríamos que era uma personal trainer de gavage, aquela técnica de empanturrar os gansos. Enfia comida pela goela adentro das adolescentes casadoiras até que adquiram formas rotundas.
Chega uma menina de uns 14 anos, esbelta, nada magra como nossas modelos, bonitinha, e escuta um discurso sobre magreza, que os homens gostam de mulher gorda, que ela vai ter que casar e não é assim magrela que vai conseguir noivo.
A menina é submetida, com carinho mas muita disciplina, a beber leite das vaca e de camelos. Mas, não é nem no copo, é numa bacia. Ela toma, toma, pára, diz que não agüenta mais, tem que tomar mais um pouco. Às vezes põe a bacia no chão e bebe como um gatinho. As outras mulheres à sua volta estão enroladas em panos coloridos, amarram-se, desamarram-se, adoram aquelas roupas, se sentem sexy com ela, só meio rosto aparecendo, puxam os panos, sorriem, embaralham as contas dos colares nos dedos. Mulher é igual no mundo inteiro.
Mas uma das mulheres tem uma aparência de professora da USP e é esclarecida, ou está esclarecida. Tomou nas mãos a bandeira de proibir esta gavache da mulheres. Conta que a filha casou, foi viver longe e que, quando ela a viu de novo, nem a reconheceu. A sogra e o genro fizeram dela um porquinha redonda, que teve um problema de coração. Desde esse dia ela sai pelas ruas, falando mal do costume de forçar as mulheres a engordarem. Engraçada é a reação dos homens, querem bater nela, avançam sobre ela, chamando-a de traidora, irritam-se sobremaneira porque amam as mulheres gordas. O que vai ser deles?
As meninotas que já engordaram não parecem infelizes. É um costume tão arraigado, como a certa hora da vida fazer a primeira comunhão, ou crisma ou batmitsvah.
Chegou a hora e ficam lá cochichando e tendo ataques de riso e se cobrindo daqui e dali com as roupas coloridas e lindas.
O cineasta resolve ir ao médico do lugar, um senhor mais velho, culto. Uma paciente coberta de panos negros, se deita de costas para o médico, na cama, sem nem afastar os véus e ele tem que achar seu caminho através das infinitas pregas para sentir a barriga dela, que tem um tumor difícil de ser percebido debaixo das banhas. E confessa que não tem poderes para mudar o costume arraigado na cabeça dos homens, e explicar que em outros lugares do mundo o conceito de beleza é outro e aquela obesidade pode fazer mal às mulheres. Explica ao cineasta que é uma região pobre e que rico é aquele que tem uma casinha, vacas gordas, tapetes, animais gordos e uma mulher bem alimentada.
Alguém comenta que também, com tanta roupa, ninguém percebe se a pessoa está gorda ou não. E a tal guru da USP diz que com qualquer "coup de vent", golpe de vento, aparece tudo.
Uma moça é filmada com uma bata transparente e o vento batendo nas pernas mostra a deformidade, as coxas em ondas, os pés mal agüentando tanto peso.
Claro que isto serve para muita vã filosofia. Ou nos mudamos todas para a Mauritânia antes que a guru sabida converta os homens, ou podemos imaginar uma reviravolta em que um dia, na Mauritânia, todas estejam magrinhas e nós rolando pelas ladeiras, alimentadas de chocolate, aplaudidas pelos homens, eleitas para comerciais de cerveja, barrigas cheias de leite grosso e amendoim e tâmaras e milho.

ninahorta@uol.com.br


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