São Paulo, sábado, 04 de novembro de 2000

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DRAUZIO VARELLA
Violência urbana

A violência urbana é uma doença contagiosa de causa multifatorial. Pode acometer indivíduos de qualquer classe social, mas é nas camadas mais pobres que ela se torna epidêmica.
Tradicionalmente, as sociedades responderam à violência urbana com o encarceramento. Das masmorras da Idade Média às cadeias de hoje, o sistema prisional pouco evoluiu em sua essência. Este artigo não tem a pretensão de apontar soluções para a criminalidade, pretende apenas mostrar a extrema complexidade do problema.
O argumento mais aceito para justificar a violência que se instalou nas grandes cidades nos últimos 30 anos é o da desigualdade social. De fato, sociedades desiguais tendem a se tornar mais violentas. Tal tendência não explica, entretanto, o aumento da violência ocorrido em países como Suécia ou Dinamarca, no mesmo período. Nem explica por que a criminalidade está diminuindo nos Estados Unidos desde 1992, quando, na década de 90, houve aumento sem paralelo na concentração de renda naquele país. Não consegue justificar nem sequer por que, numa mesma família, apenas um dos filhos envereda pelo crime, enquanto os outros enfrentam três conduções para chegar ao trabalho na hora certa.
O segundo argumento fala da superpopulação dos grandes centros urbanos, fenômeno ocorrido na segunda metade do século. Quanto menor o espaço individual, maior a agressividade entre os homens, muitos imaginam. Não é verdade. Tóquio tem mais de 10 milhões de habitantes apinhados em espaços mínimos, e senhoras de idade podem andar tranquilas pelas ruas a qualquer hora da noite. O pavilhão 5 do Carandiru, em São Paulo, é de longe o mais lotado da cadeia: são 1.600 homens feito sardinha em lata. Nos últimos dois anos e meio, foi assassinado um único preso em suas dependências, número insignificante comparado às mortes que ocorreram nos outros pavilhões.
O terceiro aponta a impunidade como estímulo para os marginais. Não há como negar que, em sociedades como a nossa, a falta de punição estimule a criminalidade. No Carandiru, quando pergunto a um preso por qual motivo foi condenado a oito anos de cadeia, e ele diz que foi por causa de dois assaltos, a segunda pergunta que faço é: mas quantos você cometeu? Não é raro ouvir que foram mais de 50 ou cem.
Embora programas de repressão do tipo tolerância zero tenham tido sucesso parcial em algumas cidades no exterior, é preciso lembrar que a aplicação desses programas só tem sido possível depois de amplas reformas das polícias locais, que tornaram a carreira mais atraente e estabeleceram estratégias enérgicas de combate à corrupção.
A questão da impunidade, no entanto, é indissociável do encarceramento, uma vez que prender alguém significa trancá-lo. O argumento de que lugar de ladrão é na cadeia, aparentemente lógico, não é tão simples de ser aplicado na prática. Senão vejamos:
1) É muito difícil pôr na cadeia os chamados criminosos de colarinho branco, que servem de péssimo exemplo à população. A Justiça brasileira não está preparada para enfrentar esses casos. Ladrões de dinheiro público, por exemplo, costumam ocupar cargos que lhes garantem impunidade legal ou contratar advogados que encontram recursos para tornar seus processos intermináveis.
2) Prender mais não diminui obrigatoriamente a criminalidade. Nunca se prendeu tanto como no Brasil de hoje, e a violência não pára de crescer. No Estado de São Paulo, o governo atual duplicou o número de vagas nos presídios. Foram todas ocupadas sem qualquer impacto na redução da violência. Se fossem cumpridas as dezenas de milhares de mandados de prisão já expedidos, quantos presídios mais seriam necessários? A que custo?
3) A experiência americana é didática: em 1970, havia um presidiário para cada mil habitantes. Nos 20 anos que se seguiram, o aprisionamento aumentou de tal forma que, em 1990, eram cinco americanos presos para cada mil habitantes.
Nesse período, paradoxalmente, os índices de criminalidade cresceram ano após ano.
Embora na maioria dos casos não existam alternativas à prisão, é importante lembrar que o aprisionamento tem efeito apenas passageiro: o criminoso preso fica impedido de delinquir nas ruas. Quando é libertado, porém, está mais pobre, rompeu laços familiares e sociais e dificilmente encontrará emprego. Além disso, na prisão, estabeleceu conexões mais sólidas com o mundo do crime. A probabilidade de voltar a delinquir será grande, como atestam os baixíssimos índices de reabilitação de nosso sistema penal.
Construir cadeias custa caro; administrá-las, mais ainda. Seria mais sensato investir o que gastamos com elas em educação para prevenir a criminalidade. Mas como reagir à ousadia dos criminosos que infernizam nossas famílias sem investir milhões em novos presídios e repressão policial, mesmo sabendo que se trata de uma guerra perdida?
Estamos atolados nesse impasse. Serão necessários investimentos e muitos anos de trabalho educativo junto às camadas nas quais a violência se tornou epidêmica para que a criminalidade brasileira comece a diminuir lentamente. A complexidade do problema é tal que requer prioridade do governo e envolvimento eficaz da sociedade em ações comunitárias. Não existem soluções mágicas, infelizmente.



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