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FERNANDO GABEIRA
Coisas impossíveis antes do café
Aqui de Ipanema, a única mensagem das ruas é esta: é melhor ser alegre do que triste
NO SEU diálogo com a Rainha
Branca, Alice, a personagem
de Lewis Carroll, acha ridícula a idéia de que, para desejar coisas impossíveis, basta respirar fundo e fechar os olhos. A Rainha diz
que Alice não tem prática e que o
melhor exercício diário para ganhá-la é pensar em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
Esse diálogo de Alice com a Rainha Branca é o ponto de partida para
um belo livro de Lewis Wolpert sobre a origem evolucionária das crenças. Ele se concentra mais em idéias
do tipo "leite com manga faz mal",
"não se pode abrir sombrinha num
lugar fechado nem passar por baixo
de escadas".
Nesse momento em que alguns
grupos tentam arrastar o Brasil para
as brumas da Guerra Fria, talvez fosse interessante mostrar como suas
crenças inviabilizam a idéia de diálogo e esforço conjunto para resolver os problemas do país.
Não é possível mais acreditar que
a liberdade de imprensa é apenas
um valor burguês, uma típica luta de
direita. Por que conferir esse charme à direita?
Trabalhei em dois jornais que foram empastelados: o "Binômio", de
José Maria Rabelo e Euro Arantes, e
o "Panfleto", de Brizola. Eram de esquerda. Quando menino, vi um filme de John Ford e um personagem
dizia para um homem chamado Liberty: não tome liberdades com a liberdade de imprensa.
É espantoso, sobretudo para
quem vive no Rio de Janeiro, classificar a crítica a certas políticas sociais como reação de direita. Ajudar
aos pobres, sim, mas crescer também para que essa ajuda seja sustentável. Além disso, o Prêmio Nobel da
Paz está para mostrar que, em Bangladesh, a filosofia era mais do que
dar dinheiro; passava por despertar
o enorme potencial produtivo dos
indivíduos.
É no mínimo surpreendente atribuir à direita a proposta de cortes de
gastos na máquina estatal. Lula afirmou que os cortes sempre significam supressão de empregos e corte
de salários. Mas ele vem de uma longa experiência sindical.
As multi reduzem custos para se
tornarem mais competitivas, ampliarem lucros. No caso do Estado,
cada centavo de economia pode ser
redirecionado para o bem. Para
manter a segurança de vôos, por
exemplo.
Tornei-me um grande "direitista"
por defender a quebra do monopólio nas comunicações. Milhões de
telefones foram vendidos. Entendi
como um processo de redistribuição
de renda. Antigamente, um prestador de serviço usava telefone de recado. Ainda bem que meus eleitores,
diante do aparelho concreto, compreenderam bem os argumentos.
Outra crença interessante é a de
que, com a ajuda do governo, vai florescer uma imprensa alternativa.
Essa premissa já a faz nascer com
um pecado mortal. Será que não se
percebeu ainda que essa revolução
já aconteceu e que não depende dos
trocadinhos do governo? A internet
está aí possibilitando o blog próprio,
tevê e rádio próprias.
O próprio PT, através de seus simpatizantes, fez um uso maciço e um
pouco atemorizante da rede. Eu
mesmo recebi mensagens dizendo
que era um traidor do povo brasileiro e que, junto com Caetano Veloso,
iria para a lata de lixo da história.
Desconheço o abrigo atual de Caetano. No meu caso, já fui condenado,
há anos, à lata de lixo da história.
Que corrente política me tirou de lá?
E agora, por que me condenam de
novo?
Sinceramente, pensei que estavam alegres com a vitória eleitoral e
que iam se dedicar aos projetos que
possam realizar as expectativas da
maioria que os consagrou. Em vez
disso, resolvem ajustar suas contas
com a imprensa.
Aqui de Ipanema, a única mensagem das ruas, pelo menos da Vinicius de Moraes, é esta: é melhor ser
alegre do que triste. Em 2002, os
vencedores sorriam para o amanhã.
Hoje, parecem ressentidos e, para
azar de todos, aterrissaram no
maior apagão aéreo dos últimos
anos.
As diferenças esquerda-direita,
dramatizadas na campanha, lembram-me um pouco daquele soldado japonês que passou anos ignorando que a guerra havia acabado.
Os dois pólos sobrevivem em toda
parte. Mas se a esquerda chilena desembarcasse por aqui, ou mesmo a
direita sueca, estariam arriscadas a
sofrer críticas de seu próprio campo.
Objetivamente, há um enorme espaço para se entender. Na cabeça,
ainda estamos divididos, hostilizando-nos mutuamente.
Talvez a saída seja mesmo a da
Rainha Branca: fechar os olhos, respirar fundo e pensar em seis coisas
impossíveis antes do café da manhã.
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