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ENTREVISTA ZÉLIA GATTAI
Depois que Jorge se foi, não há nada que me assombre
Escritora diz que sonha muito com Jorge Amado e comenta a dificuldade em financiar um memorial dedicado ao marido
Raimundo Paccó/Folha Imagem
| Autora em sua casa, em Salvador, na última terça |
LUIZ FRANCISCO
DA AGÊNCIA FOLHA, EM SALVADOR
Zélia Gattai, 91, diz não temer a morte. E afirma que
prepara o 17º livro da carreira. Depois de várias internações neste ano, a viúva de Jorge Amado (1912-2001) interrompeu o trabalho. "Estou escrevendo, mas é um
segredo. Quando estiver totalmente recuperada, volto
ao computador", disse à Folha na última terça.
Na sala do apartamento de
Zélia em Salvador, tudo lembra
Jorge Amado. São fotos, quadros, ilustrações, livros traduzidos em 50 idiomas e até o cachorro Fadul Abdala, nome de
personagem criado por Amado
em "Tocaia Grande: A Face
Obscura" (1984). No centro de
uma mesa, o busto do escritor
baiano mais conhecido, marido
de Zélia por 56 anos.
É nesse cenário de recordações que a escritora tenta enfrentar os problemas de saúde.
Desde janeiro, Zélia já foi internada dez vezes.
Sentada em uma cadeira de
rodas e inalando oxigênio, ela
conversou com a reportagem
por quase duas horas. "Não tenho medo da morte. Depois
que Jorge Amado se foi, não há
nada que me assombre", disse.
Durante a entrevista, ela ficou
ao lado da filha Paloma, que pediu à Folha que evitasse temas
que pudessem emocioná-la.
FOLHA - O que é viver para a senhora sem Jorge Amado?
ZÉLIA GATTAI - Desde a morte de
Jorge, há um vazio, uma ausência muito grande em minha vida. Eu sonho muito com Jorge
Amado. No mês passado, quando estava internada, queria sair
logo do hospital, mas os médicos não me davam alta.
Então, sonhei que estava em
um local com muita palha. Uma
mão se mexia, era uma mão
muito gelada, era a mão de Jorge Amado. Então, falei assim:
"Jorge, se você estiver me ouvindo, me leve, você já conhece
tudo aí, está com os nossos amigos, quero ficar com você".
FOLHA - Então, a senhora não tem
medo da morte?
ZÉLIA - Claro que não tenho
medo da morte. Depois que
Jorge se foi, não há nada que
me assombre.
FOLHA - A senhora sempre disse
que o casamento com Jorge Amado
foi perfeito. Vocês nunca brigaram,
nunca tiveram crises?
ZÉLIA - Nunca briguei com ele.
O que havia em nossa convivência era graça, cumplicidade,
amor e respeito. E, seis anos
após a sua morte, ainda o vejo
todos os dias. No começo deste
ano, quando estava novamente
na cama de um hospital, senti
uma mão tocando o meu tornozelo, subindo levemente até a
panturrilha. Aí, sem que nada
mais acontecesse, a sensação
foi interrompida. Contei o que
senti para o [escritor] João
Ubaldo [Ribeiro], que também
estava internado no mesmo
hospital. E ele me respondeu:
"Zélia, a mão não era do Jorge.
Se fosse, ela não se contentaria
em parar na panturrilha".
FOLHA - Jorge Amado era então
muito namorador?
ZÉLIA - Quando conheci o Jorge, ele era muito respeitador,
não era daqueles rapazes que
vão metendo a mão (risos). Depois, a nossa convivência evoluiu muito. Sempre nos amamos muito. Na casa onde moramos por quase 40 anos, no Rio
Vermelho, a gente acordava
muito cedo para caminhar de
mãos dadas pelo jardim. E, todos os dias, ele me falava a mesma coisa: "Quando eu morrer,
quero ficar por aqui [as cinzas
do escritor foram depositadas
ao lado de uma árvore da casa]".
FOLHA - A senhora lembra com carinho dessa casa, mas o imóvel está
hoje com péssima aparência e problemas de infra-estrutura. O que a
senhora sente quando vai à casa?
ZÉLIA - Fico com o coração
apertado em ver como está a
casa que é um pedaço da minha
vida. É uma pena que tudo isso
tenha acontecido.
FOLHA - A senhora acha que falta
vontade política para concretizar o
sonho da família, que é a montagem do memorial Jorge Amado?
ZÉLIA - Acho que a situação deveria estar resolvida há muito
tempo. Nós não pedimos verba
para o governo. Nós elaboramos um projeto com base na
Lei Rouanet. Entramos com
um pedido de R$ 3,5 milhões e
só conseguimos a liberação de
R$ 150 mil para captarmos com
empresas interessadas no financiamento. É evidente que
esse dinheiro não é suficiente.
Depois, a Petrobras, que tinha demonstrado interesse na
restauração, recuou. Mas agora
as coisas parecem que estão caminhando. Como algumas pessoas dizem, parece que a gente
não fez nada na casa depois que
Jorge morreu, o que não é verdade. Nos últimos quatro anos,
investimos quase R$ 600 mil
na montagem do projeto do
memorial e em reformas.
FOLHA - A Fundação Casa de Jorge
Amado, que abriga todo o acervo
deixado por seu marido, também
atravessa grave crise financeira.
ZÉLIA - Pois é, houve um corte
de verbas muito grande e os dirigentes da fundação foram
obrigados a tomar medidas para conter as despesas, , mesmo
que isso significasse colocar em
risco o acervo deixado por Jorge. Mas não perco a esperança.
Recentemente, minha filha
[Paloma] recebeu ligação de
Fátima Mendonça [mulher do
governador da Bahia, Jaques
Wagner] dizendo que as coisas
vão melhorar. Devemos muito
ao João Ubaldo Ribeiro, muito
passional, que levantou a bandeira da restauração.
FOLHA - Neste ano, a senhora perdeu um dos maiores amigos da família Amado, o senador Antonio
Carlos Magalhães. A senhora acha
que ele faz falta à Bahia?
ZÉLIA - Claro que faz falta. Antonio Carlos Magalhães foi um
grande político, uma pessoa
que sempre colocou os interesses da Bahia à frente de tudo.
FOLHA - Como a senhora avalia os
dez primeiros meses da administração do governador Jaques Wagner?
ZÉLIA - O tempo é curto demais
para qualquer avaliação. Mas
existe uma esperança muito
grande para que o governador
melhore a vida dos baianos.
FOLHA - Qual a opinião da senhora
sobre o governo do presidente Lula?
[Paloma não deixa a mãe responder e diz: "Vamos mudar de
assunto para ela não ficar cansada. Os médicos me recomendaram muito repouso para ela
se recuperar rapidamente".]
FOLHA - Tirando Jorge Amado,
quais os seus escritores preferidos?
ZÉLIA - Érico Veríssimo e João
Ubaldo Ribeiro.
FOLHA - Depois da morte de Jorge
Amado, a senhora releu livros dele?
ZÉLIA - Reli toda a obra e, cada
vez, fico mais encantada com a
sua forma simples de escrever,
a facilidade que ele tinha para
contar as histórias do povo, das
pessoas humildes, da Bahia.
FOLHA - Quais os livros de Jorge
Amado que a senhora mais admira?
ZÉLIA - "Capitães da Areia"
(1937) e "Tenda dos Milagres"
(1969) são fundamentais.
FOLHA - Como se conheceram?
ZÉLIA - Quando o conheci, já tinha lido uns dez livros dele e
era admiradora de sua obra.
Houve um comício no estádio
do Pacaembu para comemorar
a liberdade de Luiz Carlos Prestes [1898-1990, militar e líder
comunista brasileiro]. Quando
Jorge soube do comício, resolveu participar das comemorações, mesmo proibido de sair
da Bahia sem permissão das autoridades. Eu estava no meio de
milhares de pessoas quando
ouvi: "Jorge Amado está aqui,
Jorge Amado vai participar do
comício". Pouco tempo depois,
vi um rapaz magro sendo cumprimentado por todo mundo.
FOLHA - Mas como a senhora se
aproximou dele?
ZÉLIA - Foi incrível. No meio de
tanta gente, ele pôs os olhos em
mim e falou: "Você vai trabalhar comigo". Tremi de emoção. Depois, ele me pediu para
datilografar um telegrama, e eu
disse que não sabia datilografia.
Ele respondeu: "Você não sabe
escrever à máquina? Que moça
mais inútil (risos)".
FOLHA - E o que aconteceu depois?
ZÉLIA - Como ele viu que eu não
sabia datilografia, passei a colaborar com a organização do comício. Mas, no dia seguinte, eu
me matriculei em uma escola e,
em pouco tempo, escrevia com
rapidez. Aí, cheguei para ele e
disse: "Jorge, vou lhe ensinar
datilografia porque você escreve só com dois dedos (risos)".
FOLHA - E o namoro, como começou?
ZÉLIA - Como dizem os jovens,
rolou um clima entre nós. Um
dia, Jorge Amado me convidou
para ir a um jantar em homenagem ao poeta Pablo Neruda
(1904-1973). Após a confraternização, ele foi levar o Neruda
ao hotel e me deu uma carona.
Jorge nunca dirigiu na vida, então fomos de táxi. Em frente ao
Teatro Municipal de São Paulo,
ele pediu para o motorista parar o táxi e comprou uma lata
enorme cheia de cravos vermelhos e os atirou em mim. Tomei
um banho de cravos, dos pés à
cabeça, fiquei toda molhada.
Esse foi o começo de uma vida
em comum que durou 56 anos.
FOLHA - Além das fotografias, o
que mais faz a senhora se lembrar
de Jorge neste apartamento?
ZÉLIA - Tenho um quadro que
ganhamos do Di Cavalcanti
(1897-1976) que me lembra
muito o jeito irreverente do
Jorge. Você pode não acreditar,
mas esse quadro foi trocado por
um cachorro. O Di Cavalcanti
ligou para o Jorge e propôs a
troca. Ele ficou tão satisfeito
com o negócio que veio pessoalmente trazer o quadro.
FOLHA - Na literatura brasileira, a
senhora apontaria algum escritor
com estilo parecido ao de Jorge
Amado?
[Paloma não deixa a mãe responder: "Acho que essa pergunta não deve ser feita, porque
ela está lendo pouco ultimamente por causa dos problemas
de saúde".]
FOLHA - A senhora tem planos para
escrever um novo livro?
ZÉLIA - Estou escrevendo, mas
é um segredo. Tive de interromper os trabalhos por causa
da saúde. Mas, quando estiver
totalmente recuperada, volto
ao computador.
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