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Escrito por Armand Mattelart e Ariel Dorfman há 30 anos, "Para Ler o Pato Donald" foi ataque contra império Disney
Para (re)ler o Pato Donald
Associated Press
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Walt Elias Disney, que faria cem anos amanhã, exerceu influência sobre o imaginário de gerações e construiu o modelo industrial do desenho animado |
ALCINO LEITE NETO
DE PARIS
Se o século 20 foi americano, ele
também foi o século de Walter
Elias Disney. O aumento progressivo do poder dos EUA sobre o
mundo caminhou par a par com a
influência que o criador de Mickey exerceu sobre o imaginário de
gerações e gerações.
Amanhã, faz cem anos que Disney nasceu. A cultura de massa e a
indústria de entretenimento americanas lhe devem quase tudo. Ele
fixou a forma moderna e o modelo industrial dos desenhos animados. Desenvolveu como nunca se
tinha visto o marketing das histórias em quadrinhos.
Materializou a ficção em parques de divertimento construídos
nos EUA e na França. Inventou
um império econômico baseado
na fantasia, que rende hoje cerca
de US$ 20 bilhões por ano.
Contam que Stálin chorava ao
ver "Bambi". Mas Disney foi, e
ainda é, um dos personagens
americanos mais odiados pela esquerda. Tanto por sua delação de
esquerdistas em 1947, durante os
processos da Comissão de Atividades Antiamericanas, quanto
por colocar suas criações a serviço
do "american way of life" e como
propaganda da política dos EUA.
Um dos ataques mais fortes da
esquerda ao império Disney foi
feito pelo belga Armand Mattelart
e o chileno Ariel Dorfman em
"Para Ler o Pato Donald" (lançado no Brasil pela Paz e Terra). O
livro foi escrito há exatamente 30
anos, no Chile, durante o governo
do socialista Salvador Allende.
Em 1973, um golpe liderado pelo
general Augusto Pinochet depôs
Allende. Mattelart e Dorfman se
exilaram, o livro foi banido do
Chile, mas se transformou em leitura obrigatória em vários países,
inclusive o Brasil.
Mattelart e Dorfman examinavam como os personagens de Disney reproduziam a lógica capitalista, onde o dinheiro e a acumulação tinham papel predominante
nas relações "interpessoais" entre
os personagens, e como as histórias promoviam o imperialismo
americano, ao caracterizar os povos estrangeiros como atrasados,
tribalizados, ingênuos e/ou espertalhões. "O livro era um panfleto.
Mas a relação de dominação no
mundo, entre centro e periferia,
tal como a examinamos, permanece válida", diz Mattelart, 65, na
entrevista abaixo, feita em Paris,
onde ele vive.
Dorfman é hoje um famoso escritor e dramaturgo, autor de "A
Morte e a Donzela" (Paz e Terra),
e "Terapia" (Objetiva), entre outros. Mattelart tornou-se um
prestigiado teórico de comunicação.
Estudou as novelas brasileiras
em "O Carnaval das Imagens"
(com Michele Mattelart, ed. Brasiliense) e dedicou-se a examinar os
laços entre a comunicação e o
processo de mundialização econômica, em livros como "Comunicação-Mundo" (Vozes) e "A
Globalização da Comunicação"
(Edusc). Em janeiro, estará lançando no Brasil, pela Sulina, "A
História da Utopia Planetária".
Folha - Fazem 30 anos que o sr.
publicou "Para Ler o Pato Donald".
O que ainda é válido no livro e o
que precisaria ser revisto?
Armand Mattelart - "Para Ler o
Pato Donald" é um livro de circunstância. Era um panfleto, que
escrevemos em condições muito
particulares no Chile, ou seja,
quando já havia três anos da Unidade Popular, o regime de Salvador Allende. Paralelamente à pesquisa de outros modelos de cultura de massas, de revistas para
crianças, jovens e mulheres, nós
elaboramos uma crítica dessa forma de expressão.
Pois bem, apesar disso, eu creio
que há uma coisa que ainda é válida no livro, que é o capítulo que
fala sobre subdesenvolvidos e o
bom selvagem. Ele mostra como
os patos saem da metrópole e chegam em países que se chamam,
por exemplo, Aztecland. São lugares que se pode identificar [no
caso, o México", mesmo se se trata
de ficção. E, nestes países, os personagens estabelecem sempre
uma relação de dominação. Justifica-se o roubo das riquezas porque o bom selvagem não sabe o
valor das coisas. A relação de dominação no mundo, entre centro
e periferia, tal como a examinamos no livro, permanece válida.
Folha - O sr. acha que nada mudou nestas relações desde os 70?
Mattelart - Elas evoluíram, digamos. O mundo hoje é multipolar.
Mas o que vemos em um período
de guerra como agora? O problema hoje não é que a relação de dominação tenha mudado, mas que
os Estados Unidos sejam, como
nas palavras de Bill Clinton, a superpotência solitária. O que é surpreendente é que haja uma história de violência, na Ásia ou na
América Latina, desde a década
de 60, e que os americanos não tenham se tocado que a sua ação e
intervenção produzem danos a
milhões de pessoas. Foi preciso
um ataque ao país para eles se
perguntarem: por que nos
odeiam tanto?
Folha - O sr. acredita que os americanos continuam tendo uma visão fantasiosa dos povos estrangeiros, como nas histórias em quadrinhos de Disney?
Mattelart - Provavelmente, como grandes ingênuos. E hoje eles
reagem também como ingênuos,
nesta espécie de roteiro de faroeste que é a cruzada contra o jihad.
Eles continuam não se dando
conta que há um conjunto de povos que foi explorado e que continua a sê-lo por um modelo de
crescimento mundial que deixa à
margem 80% da população mundial. O que não quer dizer, evidentemente, que se possa estar de
acordo com esse tipo de atentado
que tirou a vida de mais de 5.000
pessoas em Nova York.
Folha - Mas os personagens de
Disney não se tornaram ingênuos,
se forem comparados aos novos
personagens infantis, mais violentos, ou aos videogames?
Mattelart - Sim. Creio que são
personagens que foram muito
marcados pela história, mas o
problema não está aí. O que importa é que o seu universo se tornou um signo de reconhecimento
mundial, no plano do imaginário
infantil. Disney é o primeiro produto transnacional para crianças.
Os personagens parecem ingênuos, hoje, mas isso não impede
de ver o tipo de divertimento que
eles representam. Para muitas
crianças, é um imaginário que se
naturalizou, em nível maciço.
Folha - A que o sr. atribui a longevidade dos personagens de Disney?
Mattelart - Digamos que eles se
revificam e se revitalizam a cada
vez em outros suportes, como nos
filmes e nos parques. Em Paris, a
Eurodisney costuma ter quase o
dobro de visitantes que a Torre
Eiffel e o Museu do Louvre.
Folha - O fascínio exercido pela
cultura de massas é um fato ideológico, psicológico ou religioso?
Mattelart - Os três ao mesmo
tempo. Quando escrevemos "Para Ler o Pato Donald", eram os
produtos americanos que faziam
os laços entre os diferentes países,
sobretudo na América Latina.
Nos domingos à tarde, sempre
havia uma programação americana, de Disney inclusive. O que
houve, contudo, foi uma "alfabetização" do imaginário, como dizem os publicitários. Hoje, tudo
isso mudou. No Brasil, por exemplo, existe uma forte programação nacional. E já entramos em
outra fase. O que se prepara agora
é a mercantilização da educação.
As universidades são mais e mais
solicitadas pelas empresas. Se se
deixa as universidades se privatizarem progressivamente, é evidente que se chegará também aos
poucos à alienação da educação.
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