São Paulo, terça-feira, 04 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Índice

Livro faz estudo dos personagens do escritor brasileiro à luz das teorias da psicanálise

Freud explica Machado

Embora tenha usado idéias que estão na obra de Sigmund Freud, autor pode não ter lido psicanalista

CYNARA MENEZES
DA REPORTAGEM LOCAL

Que Capitu, que nada. Bentinho sentia mesmo atração era pelo pretenso rival, Escobar. Daí seus ciúmes paranóicos da mulher, a de olhos de ressaca, de cigana oblíqua e dissimulada. Capitu, afinal inocentada da acusação de ser infiel ao marido, é apenas "a que ama no lugar do outro".
O homossexualismo enrustido do personagem principal e narrador de "Dom Casmurro" é defendido em "Freud e Machado de Assis", estudo dos personagens do escritor brasileiro à luz das teorias do "pai" da psicanálise.
No divã, Bentinho, homem fraco, dominado pela mulher e pela mãe, não resiste em dar sinais claros de uma sexualidade mal resolvida, segundo o psicanalista carioca Luiz Alberto Pinheiro de Freitas, autor do livro. "Ele diz que Capitu ama Escobar, mas quem ama Escobar é ele", afirma.
"É Freud quem aponta para esse tipo de pessoa que o Machado percebeu, que tem uma paixão homossexual pelo outro, mas diz que é a mulher que tem. Não é nenhuma invenção minha. E Machado insinua isso em vários momentos do livro."
Para exemplificar, Freitas reproduz o trecho em que Bentinho e Escobar, a quem acusaria de ser amante de sua mulher, encontram-se no seminário: "Fiquei tão entusiasmado com a facilidade mental do meu amigo, que não pude deixar de abraçá-lo. Era no pátio; outros seminaristas notaram a nossa efusão; um padre que estava com eles não gostou".
Machado (1839-1908), ao que tudo indica, pode não ter lido Freud, apesar de haver sido contemporâneo da psicanálise durante seus últimos anos de vida -a primeira edição de "Dom Casmurro" é de 1899; Sigmund Freud (1856-1939) lança "A Interpretação dos Sonhos" no ano seguinte. Na biblioteca do escritor brasileiro, não teria sido encontrado nenhum volume que se referisse à psicanálise.
Dono de uma intuição poderosa na criação da psicologia de seus personagens, Machado anteciparia aspectos estudados posteriormente por Freud ao ponto de o crítico literário Roberto Schwarz afirmar, em uma mesa-redonda, em 1982 (citado no livro de Pinheiro de Freitas): "É um autor que em 1880 está dizendo coisas que Freud diria 25 anos depois".
Em "Freud e Machado de Assis", algumas dessas nuanças da vida interior que poderiam ter se tornado, quem sabe, alvo da interpretação do próprio inventor da psicanálise, caso tivesse lido Machado, são enumeradas a partir da "terapia" sobretudo de personagens femininos. "Ele escrevia em jornais para mulheres, e todas as suas obras, mais enfaticamente as da segunda fase, têm personagens femininos marcantes", justifica Freitas.
Seis mulheres machadianas, ao todo, são psicanalizadas: quatro (Virgília, Marcela, Sofia e Capitu) representando as "pecadoras", que teriam dado um trabalhão e tanto a Freud, e duas representativas do "ideal" feminino na visão do homem -a viúva Fidélia e a morta Carmo, não casualmente inspirada na mulher de Machado, Carolina. Nelas, Pinheiro de Freitas vai achar seus "casos".
A questão da histeria, por exemplo, é representada por Sofia, personagem de "Quincas Borba" (1891), mulher casada que seduz conscientemente Rubião, sem nunca ceder ao assédio, e acaba por levá-lo à loucura. De acordo com o psicanalista, é a máxima encarnação da histérica tal qual a via Freud: "Um sujeito que se julga privado do falo", define.
Se Freud defendia em "Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervosa Moderna" (1908) que "a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento estaria na infidelidade conjugal", está a "atrevida" Virgília, de "Memórias Póstumas de Brás Cubas" (1881), que não o deixa mentir.
Virgília, movida por certo interesse de ascensão social ao se casar com Lobo Neves, encontra o consolo sexual e amoroso, isenta de sentimento de culpa, nos braços de Brás. "Entre ter um amante e um sintoma histérico, o autor preferiu o caminho do amante. É melhor gozar na cama do que no sintoma", escreve o psicanalista.
A infidelidade -ou sua suspeita- está presente em vários romances de Machado, desde o primeiro, "Ressurreição", de 1872, em que Félix hesita em se casar com Lívia porque teme ser futuramente traído. E mesmo em "Memorial de Aires" (1908), livro crepuscular em que o escritor enfoca a velhice, aparece a questão da manutenção da fidelidade diante da morte do companheiro.
Sabe-se que Freud se interessava pela literatura. Admirava Shakespeare, Goethe, Sófocles -do dramaturgo grego tirou seu complexo de Édipo. Escreveu sobre o assunto, como em "Dostoiévski e o Parricídio" (1927-1928). E declarou: "Se desejarem saber mais a respeito da feminilidade, (...) consultem os poetas". Para Pinheiro de Freitas, Machado seria um desses poderosos oráculos.


FREUD E MACHADO DE ASSIS - UMA INTERSEÇÃO ENTRE PSICANÁLISE E LITERATURA. De: Luiz Alberto Pinheiro de Freitas. Editora: Mauad. Quanto: preço a definir (175 págs.)


Texto Anterior: Artes plásticas: Franklin Cassaro experimenta o "bioconcretismo"
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.