São Paulo, sábado, 04 de dezembro de 2004

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LIVROS

ENSAIO


"Sem Receita" reúne letras de canções, um poema e uma longa entrevista

José Miguel Wisnik entrelaça literatura e música brasileira

HELOÍSA MARIA MURGEL STARLING
ESPECIAL PARA A FOLHA

Fundar uma nação onde só parece crescer o vazio, criar formas de vida em comum, introduzir a possibilidade do convívio político a partir das margens -essa a tarefa que nos coube, habitantes nesse desvio esconso do mundo ocidental a que se deu o nome de Brasil. Tarefa não apenas nossa. Nos subúrbios onde vivemos, já anotava Jorge Luis Borges em seu "Fragmentos de um Evangelho Apócrifo", o gesto de fundação sempre traduziu o dever de inventar uma maneira própria para plantar um marco de pedra num chão onde, no entanto, apenas acreditamos existir areia, deserto e aparente caos.
Não foi à toa, está visto, que José Miguel Wisnik escolheu "Sem Receita" como título para seu novo livro de ensaios -contra todas as certezas do lugar-comum, da reflexão padronizada, do hábito mental, das normas consagradas de análise, a opção pelo risco em aberto, escancarada no título, ainda é a melhor maneira de dizer (e viver) esse enredo problemático em que fica preso o projeto da fundação nacional brasileira. Distribuídos em três grandes blocos (literatura, música, outros), acompanhados de letras de canções já gravadas, de um poema e de uma longa entrevista, os ensaios desse livro lançam luz sobre a existência de uma longa e venerável trama de vínculos entre a literatura e a música brasileira.
Uma trama articulada, sutil e de análise muito arriscada, pondera o título proposto, já que no limite essa trama produz um modo peculiar de narrar o Brasil a partir dos confins, das margens entre instâncias diferentes, híbridas e incompletas -margens por onde retorna, com bastante intensidade, o tema da fundação do país, a consciência de pertencer a uma mesma comunidade de valores, de sentimentos e de intenção política comum.
Nessa geografia das margens, argumenta Wisnik, e por conta de uma conjugação muito própria de fatores, a fronteira entre os diferentes territórios que formam a tradição letrada, tradição escrita, tradição do livro e tradição oral da poesia cantada foi sistematicamente devassada por gerações de compositores, poetas e escritores que trataram de compor um repertório cultural característico do país procedendo migrações as mais surpreendentes entre o livro e a canção, a canção e o poema.
Nasce nessa fronteira um modo de sinalizar a cultura brasileira que, além de ser o lugar poético de produção de uma forma de expressão sobre o país, vem a ser também uma maneira original de pensar o Brasil: a canção popular.
Contudo, originária de um lugar assim definido como a interface entre mundos muito diferenciados, a canção brasileira só encontra sua identidade por meio de um pensamento híbrido. Dito de outra maneira: um pensamento construído na combinação contínua das diferenças, observa Wisnik, que leva essa canção a se equilibrar precariamente na borda dos procedimentos letrados de interpretação do país, entre os mecanismos de inclusão e de exclusão, ora parcialmente rejeitada, nunca admitida de todo.
Essa é a singularidade da canção como forma de inventar um pensamento sobre o Brasil e, também por conta disso, em sua constituição original nem o erudito nos vigia impassível do alto do desejo de realizar o ato puro de fazer música nem o popular nos espia zombeteiro enquanto chafurda no barro do chão -no século 19 os dois paradigmas, erudito e popular, já constituíam um terceiro, constata Wisnik, em seu ensaio de abertura, "Machado Maxixe: Considerações sobre o Caso Pestana".
Ou mesmo antes. Ao comentar o panorama literário, no Brasil, por volta da segunda metade do século 18, Sérgio Buarque de Holanda insinuou, na figura de Domingos Caldas Barbosa -padre, mulato, tocador de viola de arame, poeta árcade e compositor de modinhas e lundus-, talvez uma espécie de matriz por onde se iniciava a tradição desse saber poético e musical que se tornou, nos termos de Wisnik, marco do nosso destino comum de brasileiros. Uma tradição que desaguou, no século 20, em dois personagens emblemáticos da condição híbrida em que se formou a canção popular moderna, tal como analisada em "Sem receita": Vinicius de Moraes, o poeta do livro que criou um repertório de canções capaz de combinar ao mesmo tempo fluência lírica, lastro literário e suporte melódico; Tom Jobim, o grande maestro que queria fazer sinfonias, quartetos e sonatas e se transformou no maior clássico da composição popular brasileira.
Que a vocação para o diálogo público componha também um traço essencial dessa canção constitui outra notável conseqüência extraída por Wisnik da condição híbrida em que ela se formou. Desde o século 19, quando ainda era conhecida apenas como polca, a canção popular já se esforçava na tentativa de fornecer temas, vocabulário, opiniões, referências para construção de uma certa noção de experiência coletiva, de espaço comum -esforço que resultou na instauração de uma imensa rede de recados sobre a vida cotidiana da nação que a canção ainda hoje se incube de transmitir aos brasileiros, à flor de uma passagem, por entre as margens em que se anuncia a esperança e o abandono de um país.
Não por acaso, foi ao longo dos ensaios em que analisa a confluência das linguagens do conto, da palavra poética e do canto na obra de Guimarães Rosa que Wisnik encontrou plantado, "no fundo sem fundo" que é o Brasil, nosso marco de fundação. Um marco que não se sustenta nem na pedra nem na areia, mas se equilibra, por um triz, para sempre suspenso no movimento irisado da linguagem de uma canção.


Heloísa Maria Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e uma das organizadoras do livro "Decantando a República" (Nova Fronteira; Fundação Perseu Abramo; Faperj, 2004)

Sem Receita
    
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 69 (536 págs.)
Lançamento: hoje, das 12h às 15h, na livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915, SP, tel. 0/xx/11/3814-5811)


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