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LIVROS
ENSAIO
"Sem Receita" reúne letras de canções, um poema e uma longa entrevista
José Miguel Wisnik entrelaça literatura e música brasileira
HELOÍSA MARIA MURGEL STARLING
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fundar uma nação onde só
parece crescer o vazio, criar
formas de vida em comum, introduzir a possibilidade do convívio
político a partir das margens
-essa a tarefa que nos coube, habitantes nesse desvio esconso do
mundo ocidental a que se deu o
nome de Brasil. Tarefa não apenas
nossa. Nos subúrbios onde vivemos, já anotava Jorge Luis Borges
em seu "Fragmentos de um Evangelho Apócrifo", o gesto de fundação sempre traduziu o dever de
inventar uma maneira própria
para plantar um marco de pedra
num chão onde, no entanto, apenas acreditamos existir areia, deserto e aparente caos.
Não foi à toa, está visto, que José
Miguel Wisnik escolheu "Sem Receita" como título para seu novo
livro de ensaios -contra todas as
certezas do lugar-comum, da reflexão padronizada, do hábito
mental, das normas consagradas
de análise, a opção pelo risco em
aberto, escancarada no título, ainda é a melhor maneira de dizer (e
viver) esse enredo problemático
em que fica preso o projeto da
fundação nacional brasileira. Distribuídos em três grandes blocos
(literatura, música, outros),
acompanhados de letras de canções já gravadas, de um poema e
de uma longa entrevista, os ensaios desse livro lançam luz sobre
a existência de uma longa e venerável trama de vínculos entre a literatura e a música brasileira.
Uma trama articulada, sutil e de
análise muito arriscada, pondera
o título proposto, já que no limite
essa trama produz um modo peculiar de narrar o Brasil a partir
dos confins, das margens entre
instâncias diferentes, híbridas e
incompletas -margens por onde
retorna, com bastante intensidade, o tema da fundação do país, a
consciência de pertencer a uma
mesma comunidade de valores,
de sentimentos e de intenção política comum.
Nessa geografia das margens,
argumenta Wisnik, e por conta de
uma conjugação muito própria
de fatores, a fronteira entre os diferentes territórios que formam a
tradição letrada, tradição escrita,
tradição do livro e tradição oral da
poesia cantada foi sistematicamente devassada por gerações de
compositores, poetas e escritores
que trataram de compor um repertório cultural característico do
país procedendo migrações as
mais surpreendentes entre o livro
e a canção, a canção e o poema.
Nasce nessa fronteira um modo
de sinalizar a cultura brasileira
que, além de ser o lugar poético de
produção de uma forma de expressão sobre o país, vem a ser
também uma maneira original de
pensar o Brasil: a canção popular.
Contudo, originária de um lugar assim definido como a interface entre mundos muito diferenciados, a canção brasileira só encontra sua identidade por meio
de um pensamento híbrido. Dito
de outra maneira: um pensamento construído na combinação
contínua das diferenças, observa
Wisnik, que leva essa canção a se
equilibrar precariamente na borda dos procedimentos letrados de
interpretação do país, entre os
mecanismos de inclusão e de exclusão, ora parcialmente rejeitada, nunca admitida de todo.
Essa é a singularidade da canção
como forma de inventar um pensamento sobre o Brasil e, também
por conta disso, em sua constituição original nem o erudito nos vigia impassível do alto do desejo de
realizar o ato puro de fazer música
nem o popular nos espia zombeteiro enquanto chafurda no barro
do chão -no século 19 os dois
paradigmas, erudito e popular, já
constituíam um terceiro, constata
Wisnik, em seu ensaio de abertura, "Machado Maxixe: Considerações sobre o Caso Pestana".
Ou mesmo antes. Ao comentar
o panorama literário, no Brasil,
por volta da segunda metade do
século 18, Sérgio Buarque de Holanda insinuou, na figura de Domingos Caldas Barbosa -padre,
mulato, tocador de viola de arame, poeta árcade e compositor de
modinhas e lundus-, talvez uma
espécie de matriz por onde se iniciava a tradição desse saber poético e musical que se tornou, nos
termos de Wisnik, marco do nosso destino comum de brasileiros.
Uma tradição que desaguou, no
século 20, em dois personagens
emblemáticos da condição híbrida em que se formou a canção popular moderna, tal como analisada em "Sem receita": Vinicius de
Moraes, o poeta do livro que criou
um repertório de canções capaz
de combinar ao mesmo tempo
fluência lírica, lastro literário e suporte melódico; Tom Jobim, o
grande maestro que queria fazer
sinfonias, quartetos e sonatas e se
transformou no maior clássico da
composição popular brasileira.
Que a vocação para o diálogo
público componha também um
traço essencial dessa canção constitui outra notável conseqüência
extraída por Wisnik da condição
híbrida em que ela se formou.
Desde o século 19, quando ainda
era conhecida apenas como polca, a canção popular já se esforçava na tentativa de fornecer temas,
vocabulário, opiniões, referências
para construção de uma certa noção de experiência coletiva, de espaço comum -esforço que resultou na instauração de uma
imensa rede de recados sobre a vida cotidiana da nação que a canção ainda hoje se incube de transmitir aos brasileiros, à flor de uma
passagem, por entre as margens
em que se anuncia a esperança e o
abandono de um país.
Não por acaso, foi ao longo dos
ensaios em que analisa a confluência das linguagens do conto,
da palavra poética e do canto na
obra de Guimarães Rosa que Wisnik encontrou plantado, "no fundo sem fundo" que é o Brasil, nosso marco de fundação. Um marco
que não se sustenta nem na pedra
nem na areia, mas se equilibra,
por um triz, para sempre suspenso no movimento irisado da linguagem de uma canção.
Heloísa Maria Murgel Starling é professora de história das idéias na Universidade Federal de Minas Gerais e uma das organizadoras do livro "Decantando
a República" (Nova Fronteira; Fundação
Perseu Abramo; Faperj, 2004)
Sem Receita
Autor: José Miguel Wisnik
Editora: Publifolha
Quanto: R$ 69 (536 págs.)
Lançamento: hoje, das 12h às 15h, na
livraria da Vila (r. Fradique Coutinho, 915,
SP, tel. 0/xx/11/3814-5811)
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