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FESTIVAL DE BRASÍLIA/ARTIGO
Resultado coloca em questão o estado atual da crítica brasileira
INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA
"Peões" ganhou o prêmio
da crítica em Brasília, mas,
é bom que se saiba, ganhou raspando. Empatou em 9 a 9 com a
comédia "Bendito Fruto", e o prêmio só foi dado ao filme de
Eduardo Coutinho porque, em
primeira votação, ele havia conseguido maioria simples, de 8 a 6.
Não é "Bendito Fruto", uma comédia simpática, honesta e que
parece anunciar um cineasta de
futuro, que isso leva a pôr em
questão, mas a própria crítica de
cinema que se pratica no Brasil.
A maior parte das pessoas admite que este não é o melhor filme
de Coutinho. Pode ser. Ainda assim, existe uma distância abissal
entre os dois filmes, a tal ponto
que as argumentações a favor de
"Bendito Fruto" não passavam,
em geral, de restrições a "Peões".
E, por vezes, que restrições! Havia quem dissesse que Coutinho
se repete. O que isso quer dizer?
Que, mais uma vez, coloca a câmera diante de seus personagens
para que falem. E daí? Deveria
mudar? Há algo errado com o
procedimento? Existe algo prescrevendo que diretores de cinema
devam mudar seus métodos de
trabalho de tempos em tempos? E
o que fazer com Howard Hawks,
que fez o mesmo filme a vida inteira? Ou com Hitchcock, que fez
três ou quatro repetidamente?
Não, o argumento não convence a ninguém. O mais provável é
que "Peões" ofenda um preceito
cinematográfico pátrio recente
(data de "Cidade de Deus", em linhas gerais, mas há precursores),
segundo o qual pobres ou remediados são pessoas necessariamente brutalizadas, prontas a enfiar a faca no próximo à primeira
altercação. Esse tipo de ideário
pode ser estendido a outras camadas da população, claro, mas cai
melhor em pobres, favelados etc.
Já "Peões" é descrito como decepcionante ("chato", definiu alguém), ao que parece, por trazer
personagens simplesmente normais. São pessoas que, no passado, participaram da luta sindical,
ao lado de Lula. Qual seu destino,
é a pergunta inicial, à qual se segue outra: quem é essa gente?
São diferentes. Alguém perdeu
o emprego e tornou-se taxista.
Outro perdeu a mulher. Alguém
tem um filho metalúrgico e orgulha-se disso. São pessoas absolutamente semelhantes ao que se espera da humanidade. Seus auto-retratos têm a dignidade daquelas
velhas fotos de sala de visitas: não
transparece o heroísmo de terem
vivido uma situação única, apenas o orgulho de um dever cumprido (não só o dever de grevistas;
o principal, surpreendentemente,
é o de trabalhar bem e muito).
Sim, porque em lugar de marginais permanentes, Coutinho nos
mostra (ou antes: deixa que se
mostrem) pessoas que trabalham
para burro, que cumprem seu dever e ainda mais um pouco, que
vão ao banheiro chorar depois de
levar uma bronca de seu superior,
para não se descontrolar e perder
o emprego.
Enfim, parece que esses seres
humanos comuns não comovem
mais ninguém. Não são "novos"
nem "surpreendentes". Da mesma forma, a concepção de mise-en-scène de Coutinho, de um rigor quase religioso (não por acaso
chama-se a essa classe de diretores de "jansenistas", pelo rigor estrito, metódico, obsessivo), de
uma profundidade evidente, parece poder ser encostada em favor
da novidade mais à mão.
Desta vez, passou. Ganhou no
empate técnico. Nem por isso o
resultado é menos catastrófico
para a crítica. Que dizer?
Pode-se, apenas, sugerir ao festival que, nas próximas edições,
convide a turma do site "Contracampo" e algum outro eventual
site crítico, já que a tendência
atual na crítica brasileira (ao menos na que esteve presente a este
festival) é a de liquidação do senso
crítico; indica a tendência a uma
destruição de critérios que parece
decorrência direta da decadência
da cultura cinematográfica.
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