São Paulo, sábado, 04 de dezembro de 2004

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FESTIVAL DE BRASÍLIA/ARTIGO

Resultado coloca em questão o estado atual da crítica brasileira

INÁCIO ARAUJO
CRÍTICO DA FOLHA

"Peões" ganhou o prêmio da crítica em Brasília, mas, é bom que se saiba, ganhou raspando. Empatou em 9 a 9 com a comédia "Bendito Fruto", e o prêmio só foi dado ao filme de Eduardo Coutinho porque, em primeira votação, ele havia conseguido maioria simples, de 8 a 6.
Não é "Bendito Fruto", uma comédia simpática, honesta e que parece anunciar um cineasta de futuro, que isso leva a pôr em questão, mas a própria crítica de cinema que se pratica no Brasil.
A maior parte das pessoas admite que este não é o melhor filme de Coutinho. Pode ser. Ainda assim, existe uma distância abissal entre os dois filmes, a tal ponto que as argumentações a favor de "Bendito Fruto" não passavam, em geral, de restrições a "Peões".
E, por vezes, que restrições! Havia quem dissesse que Coutinho se repete. O que isso quer dizer? Que, mais uma vez, coloca a câmera diante de seus personagens para que falem. E daí? Deveria mudar? Há algo errado com o procedimento? Existe algo prescrevendo que diretores de cinema devam mudar seus métodos de trabalho de tempos em tempos? E o que fazer com Howard Hawks, que fez o mesmo filme a vida inteira? Ou com Hitchcock, que fez três ou quatro repetidamente?
Não, o argumento não convence a ninguém. O mais provável é que "Peões" ofenda um preceito cinematográfico pátrio recente (data de "Cidade de Deus", em linhas gerais, mas há precursores), segundo o qual pobres ou remediados são pessoas necessariamente brutalizadas, prontas a enfiar a faca no próximo à primeira altercação. Esse tipo de ideário pode ser estendido a outras camadas da população, claro, mas cai melhor em pobres, favelados etc.
Já "Peões" é descrito como decepcionante ("chato", definiu alguém), ao que parece, por trazer personagens simplesmente normais. São pessoas que, no passado, participaram da luta sindical, ao lado de Lula. Qual seu destino, é a pergunta inicial, à qual se segue outra: quem é essa gente?
São diferentes. Alguém perdeu o emprego e tornou-se taxista. Outro perdeu a mulher. Alguém tem um filho metalúrgico e orgulha-se disso. São pessoas absolutamente semelhantes ao que se espera da humanidade. Seus auto-retratos têm a dignidade daquelas velhas fotos de sala de visitas: não transparece o heroísmo de terem vivido uma situação única, apenas o orgulho de um dever cumprido (não só o dever de grevistas; o principal, surpreendentemente, é o de trabalhar bem e muito).
Sim, porque em lugar de marginais permanentes, Coutinho nos mostra (ou antes: deixa que se mostrem) pessoas que trabalham para burro, que cumprem seu dever e ainda mais um pouco, que vão ao banheiro chorar depois de levar uma bronca de seu superior, para não se descontrolar e perder o emprego.
Enfim, parece que esses seres humanos comuns não comovem mais ninguém. Não são "novos" nem "surpreendentes". Da mesma forma, a concepção de mise-en-scène de Coutinho, de um rigor quase religioso (não por acaso chama-se a essa classe de diretores de "jansenistas", pelo rigor estrito, metódico, obsessivo), de uma profundidade evidente, parece poder ser encostada em favor da novidade mais à mão.
Desta vez, passou. Ganhou no empate técnico. Nem por isso o resultado é menos catastrófico para a crítica. Que dizer?
Pode-se, apenas, sugerir ao festival que, nas próximas edições, convide a turma do site "Contracampo" e algum outro eventual site crítico, já que a tendência atual na crítica brasileira (ao menos na que esteve presente a este festival) é a de liquidação do senso crítico; indica a tendência a uma destruição de critérios que parece decorrência direta da decadência da cultura cinematográfica.


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