São Paulo, domingo, 04 de dezembro de 2005

Texto Anterior | Índice

FERREIRA GULLAR

Graça besta

O jogo é uma espécie de batalha que não resulta em mortos e feridos (ou não deveria), mas expressa a necessidade natural do ser humano de disputar e afirmar-se perante o outro que, no jogo, é um adversário convencionado -o "inimigo" numa guerra simulada. O jogador não pretende o extermínio do adversário mas, simbolicamente, uma afirmação de sua própria superioridade. Jogar é, portanto, uma coisa séria fingindo que é brincadeira, não uma farsa. Por isso mesmo tem regras que são, na verdade, a sua essência, melhor dizendo, o próprio jogo. As regras estabelecem os limites em que os jogadores podem atuar e, com isso, impõem dificuldades iguais a todos os participantes da disputa, visando tornar eqüitativas e justas as condições em que disputam, o que nem sempre acontece na vida. A obediência às regras é que qualifica o vencedor e lhe legitima a vitória, sem violá-las. Há de ganhar quem jogue melhor.
O jogo implica, portanto, uma ética: o compromisso tácito de não violar as regras, de não enganar o contendor. Roubar no jogo é perder o sentido do que é jogar: vencer dentro das regras, já que vencer, burlando-as, é trair a própria essência do jogo; e isso acontece quando a vontade de ganhar, de afirmar-se perante o outro, se sobrepõe à alegria de vencer por ser melhor. Quando o jogador deseja vencer a qualquer preço, mesmo roubando, é que a necessidade de auto-afirmação sofreu uma grave anomalia: o jogador desonesto começa por enganar a si mesmo e a aceitar como verdadeira a vitória que não houve, a vitória fraudada, fruto da burla. Isso ocorre com mais freqüência quando a disputa envolve dinheiro. Daí a necessidade de haver um juiz, um árbitro, cuja função é fazer com que os jogadores obedeçam às regras. Só que, às vezes, o próprio juiz erra.
Todo este papo-cabeça tem por objetivo abordar uma questão sempre presente nos jogos de futebol, essa paixão nacional: os erros dos juizes, que têm às vezes conseqüências desastrosas. Agora mesmo, há duas semanas, no jogo decisivo do Corinthians com o Internacional, o juiz não apenas deixou de assinalar um pênalti como ainda expulsou o jogador do Inter, erros que sem dúvida alguma influíram no resultado da partida e provavelmente do próprio campeonato. Ao ver, depois, o videoteipe do lance, o juiz reconheceu o equívoco, mas isto não mudou nada. Seria diferente se o tivesse visto no momento mesmo em que o lance se deu. Erro semelhante ocorreu, uma semana depois, na decisão entre Grêmio e Náutico, quando o juiz, após não marcar um pênalti indiscutível, marcou um inexistente. Houve quase uma guerra na campo. Por que, então, não recorrer ao videoteipe para impedir equívocos desastrosos como este? A verdade é que tais erros provocam muita discussão na mídia, mas, no final das contas, reconhece-se que "errar é humano" e fica por isso mesmo. Embora existam hoje recursos tecnológicos que possibilitam, de imediato, comprovar se a decisão do juiz foi correta ou não, os responsáveis pelo futebol negam-se a adotá-los alegando que tais erros geram polêmicas e que nisto é que reside a graça do esporte!
É inevitável constatar que uma mentalidade extremamente conservadora, neste particular, predomina nos setores futebolísticos. Exemplo disso foi a tentativa feita para reduzir o número excessivo de faltas, praticadas durante as partidas, para "matar a jogada". As vítimas preferenciais dessas faltas são os melhores jogadores, os mais técnicos, os mais hábeis, que dão brilho às partidas, os jovens mestres do futebol-arte. Certa vez, num Torneio Rio-São Paulo, adotou-se com ótimo resultado o limite de faltas tolerável -acima de nove, o time faltoso sofria penalidade máxima. Apesar da experiência ter reduzido o número de faltas nos jogos do torneio, foi descartada porque "tirava a graça do jogo".
Um escândalo recente revelou que nem sempre o juiz erra involuntariamente. Sabe-se agora que havia uma quadrilha que se valia de juízes venais para alterar o resultado das partidas. Em face disto, que confiança podemos ter na atuação dos árbitros? Como aferir se um impedimento inexistente que o juiz assinalara resultou de mero equívoco ou foi um ato criminoso? A única solução, a meu ver, seria adotar os recursos técnicos que permitem, como o videoteipe, verificar se houve ou não penalidade. Trata-se de uma prova irrefutável que deixaria confiantes tanto o torcedor quanto os dirigentes e os jogadores. Com isso, o juiz honesto estaria livre de erros insanáveis, os desonestos desistiriam de assinalar penalidades inexistentes e o torcedor, cujo time tenha perdido, teria que se conformar em face do resultado indiscutível. As discussões no boteco continuariam, mas sem o ressentimento do torcedor que se sente garfado pelo "juiz ladrão". Haveria menos motivos para a guerra das partidas. A graça do futebol, como todos sabemos, não está nos erros do juiz nem nas brigas de rua e, sim, no jogo bem jogado, conforme as regras.


Texto Anterior: Novelas da semana
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.