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FERREIRA GULLAR
Graça besta
O jogo é uma espécie de batalha que não resulta em
mortos e feridos (ou não deveria),
mas expressa a necessidade natural do ser humano de disputar e
afirmar-se perante o outro que,
no jogo, é um adversário convencionado -o "inimigo" numa
guerra simulada. O jogador não
pretende o extermínio do adversário mas, simbolicamente, uma
afirmação de sua própria superioridade. Jogar é, portanto, uma
coisa séria fingindo que é brincadeira, não uma farsa. Por isso
mesmo tem regras que são, na
verdade, a sua essência, melhor
dizendo, o próprio jogo. As regras
estabelecem os limites em que os
jogadores podem atuar e, com isso, impõem dificuldades iguais a
todos os participantes da disputa,
visando tornar eqüitativas e justas as condições em que disputam, o que nem sempre acontece
na vida. A obediência às regras é
que qualifica o vencedor e lhe legitima a vitória, sem violá-las. Há
de ganhar quem jogue melhor.
O jogo implica, portanto, uma
ética: o compromisso tácito de
não violar as regras, de não enganar o contendor. Roubar no jogo
é perder o sentido do que é jogar:
vencer dentro das regras, já que
vencer, burlando-as, é trair a própria essência do jogo; e isso acontece quando a vontade de ganhar,
de afirmar-se perante o outro, se
sobrepõe à alegria de vencer por
ser melhor. Quando o jogador deseja vencer a qualquer preço,
mesmo roubando, é que a necessidade de auto-afirmação sofreu
uma grave anomalia: o jogador
desonesto começa por enganar a
si mesmo e a aceitar como verdadeira a vitória que não houve, a
vitória fraudada, fruto da burla.
Isso ocorre com mais freqüência
quando a disputa envolve dinheiro. Daí a necessidade de haver um
juiz, um árbitro, cuja função é fazer com que os jogadores obedeçam às regras. Só que, às vezes, o
próprio juiz erra.
Todo este papo-cabeça tem por
objetivo abordar uma questão
sempre presente nos jogos de futebol, essa paixão nacional: os erros
dos juizes, que têm às vezes conseqüências desastrosas. Agora mesmo, há duas semanas, no jogo decisivo do Corinthians com o Internacional, o juiz não apenas deixou de assinalar um pênalti como
ainda expulsou o jogador do Inter, erros que sem dúvida alguma
influíram no resultado da partida
e provavelmente do próprio campeonato. Ao ver, depois, o videoteipe do lance, o juiz reconheceu o
equívoco, mas isto não mudou
nada. Seria diferente se o tivesse
visto no momento mesmo em que
o lance se deu. Erro semelhante
ocorreu, uma semana depois, na
decisão entre Grêmio e Náutico,
quando o juiz, após não marcar
um pênalti indiscutível, marcou
um inexistente. Houve quase
uma guerra na campo. Por que,
então, não recorrer ao videoteipe
para impedir equívocos desastrosos como este? A verdade é que
tais erros provocam muita discussão na mídia, mas, no final das
contas, reconhece-se que "errar é
humano" e fica por isso mesmo.
Embora existam hoje recursos
tecnológicos que possibilitam, de
imediato, comprovar se a decisão
do juiz foi correta ou não, os responsáveis pelo futebol negam-se a
adotá-los alegando que tais erros
geram polêmicas e que nisto é que
reside a graça do esporte!
É inevitável constatar que uma
mentalidade extremamente conservadora, neste particular, predomina nos setores futebolísticos.
Exemplo disso foi a tentativa feita
para reduzir o número excessivo
de faltas, praticadas durante as
partidas, para "matar a jogada".
As vítimas preferenciais dessas
faltas são os melhores jogadores,
os mais técnicos, os mais hábeis,
que dão brilho às partidas, os jovens mestres do futebol-arte. Certa vez, num Torneio Rio-São Paulo, adotou-se com ótimo resultado o limite de faltas tolerável
-acima de nove, o time faltoso
sofria penalidade máxima. Apesar da experiência ter reduzido o
número de faltas nos jogos do torneio, foi descartada porque "tirava a graça do jogo".
Um escândalo recente revelou
que nem sempre o juiz erra involuntariamente. Sabe-se agora que
havia uma quadrilha que se valia
de juízes venais para alterar o resultado das partidas. Em face disto, que confiança podemos ter na
atuação dos árbitros? Como aferir se um impedimento inexistente que o juiz assinalara resultou
de mero equívoco ou foi um ato
criminoso? A única solução, a
meu ver, seria adotar os recursos
técnicos que permitem, como o videoteipe, verificar se houve ou
não penalidade. Trata-se de uma
prova irrefutável que deixaria
confiantes tanto o torcedor quanto os dirigentes e os jogadores.
Com isso, o juiz honesto estaria livre de erros insanáveis, os desonestos desistiriam de assinalar
penalidades inexistentes e o torcedor, cujo time tenha perdido,
teria que se conformar em face do
resultado indiscutível. As discussões no boteco continuariam, mas
sem o ressentimento do torcedor
que se sente garfado pelo "juiz ladrão". Haveria menos motivos
para a guerra das partidas. A graça do futebol, como todos sabemos, não está nos erros do juiz
nem nas brigas de rua e, sim, no
jogo bem jogado, conforme as regras.
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