São Paulo, sexta, 4 de dezembro de 1998

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Tudo é Rogério Sganzerla


Em "Tudo É Brasil, que estréia hoje, o diretor narra a vinda de Orson Welles ao Brasil, nos anos 40


LEDUSHA
Colunista da Folha

Com "Tudo É Verdade", que estréia hoje, o cineasta Rogério Sganzerla retoma um assunto que já havia abordado no filme "Nem Tudo É Verdade": a passagem de Orson Welles pelo Brasil. Em entrevista à Folha, o diretor fala mais sobre o cineasta norte-americano.

Folha - Como começou esse romance com Orson Welles?
Rogério Sganzerla -
Em 1965 fiz artigos sobre "Cidadão Kane".
Folha - Fazia crítica literária e de cinema?
Sganzerla -
Exatamente. Escrevia para "O Estado de S.Paulo". Aí um amigo me convidou para ir ao juizado de menores para ver o filme e me deu uma carteira de fiscal, o que me permitia entrar em qualquer cinema de graça. Essa carteira fez com que eu visse três, quatro trechos de filmes por dia. Havia uma produção mundial muito interessante na época... Quando vi o filme, já conhecia de cor o roteiro.
Folha - Como foi ver o filme?
Sganzerla -
Achei muito melhor, muito diferente do que eu imaginava. Pensei: "Como esse filme é novo, tem uma pulsação!". O cara só tinha 25 anos, mas o filme era de uma maturidade incrível. O que veio depois é consequência disso.
Folha - E o que veio antes?
Sganzerla -
O mais interessante é que em 1958 eu tinha 12 anos e, nas festinhas, nós usávamos a mesma emblemática do Welles. Eu colocava uma camisa listrada com paletó por cima, tomava cachaça com Coca-Cola e gritava: "Tudo é Brasil!". Quando fui ver o Welles dizendo isso, a foto dele com a roupa que a gente sem saber usava, com a Coca-Cola, eu disse que a gente já estava influenciado sem saber!
Folha - Qual o sentido do seu "tudo é Brasil" naquela época?
Sganzerla -
Tinha aquele otimismo da época, "tudo é possível". Nem imaginava que iria encontrar tantas dificuldades.
Folha - Como tem sido sua relação com a crítica?
Sganzerla -
Sempre tive uma relação bacana com a crítica. Acho que o meu problema não é com os críticos, é com os burocratas. O burocrata condena aquilo que não processa. É um cara que nunca fez nada e fica cagando regra.
Folha - Voltando ao Welles, como você já disse, ele é o maior mito...
Sganzerla -
...da comunicação humana. Porque tudo é antes e depois de Orson Welles. No rádio, no teatro. Ele tinha um conhecimento profundo de literatura também. Não se preocupou em inovar o nosso cinema, mas fez tudo que o cinema brasileiro viria a fazer.
Folha - Onde começa o blablablá sobre Orson Welles no Brasil?
Sganzerla -
Primeiro, ele deve ter falhado por dois motivos: um, em relação à administração do dinheiro. O outro foi que ele não conseguiu contar, ou melhor, nunca contou nem lamentou essa história. O que faltou a ele foi o apoio da nossa inteligência. Todos achavam que o sujeito era um irreverente e se dava bem com o povo. Mas quem acabou, deu o golpe de misericórdia, foi Portinari.
Folha - Como foi essa história?
Sganzerla -
Portinari disse a ele: "O senhor, sr. Orson, nunca percebeu o que fez lá em Ouro Preto?". Aí eu procurei saber o que o Welles tinha feito lá. Ele tinha mijado na rua (risos). Não dá, né? Era um stalinista, um típico seminarista, esse Portinari. Para mim, ele sempre foi um péssimo pintor. Eu sei que ele tem técnica, mas é um lixo aquilo.
Folha - Você não acha que o Welles tinha um quê oswaldiano?
Sganzerla -
Tinha, eles tinham um temperamento semelhante. Uma vez o Oswald tomou a iniciativa de telefonar para o Welles de São Paulo. Quando ele atendeu, o Oswald falou: "Aqui está falando o gênio da América do Sul querendo falar com o gênio da América do Norte" (risos). Conversaram e o Oswald escreveu um roteiro que dedicou a Orson Welles. Eu achei esse roteiro.
Folha - E o que foi feito dele?
Sganzerla -
Eu o filmei, chama-se "O Perigo Negro". É sobre futebol e o processo da Copa do Mundo. Permanece inédito no Brasil.
Folha - Além do temperamento irreverente, o que você acha que fomentou a má-fama de Welles?
Sganzerla -
Uma certa ingenuidade, uma imagem de "alojado" do enviado formal da política da boa vizinhança, que se transformou num criador de casos para o Estado Novo. Sem esquecer uma certa inexperiência. Numa idade crítica, ele, que veio como diplomata cultural em tempo de guerra, foi convidado para jantar com as autoridades da época, mas chocou muita gente porque preferia tomar cachaça com Grande Otelo. Acho que o filme mostra bem o Orson em foco infinito, tem uma estrutura meio circular, que faz parte até do temperamento dele.
Folha - Como foi o comportamento do governo nesse caso?
Sganzerla -
Foi o governo quem teve a idéia, convidou, no fim deu um pé na bunda. Ele foi cuspido para fora numa prova de brutalidade, de intolerância, que é o problema do abuso de autoridade, que é o grande problema do século que Welles denunciou nos filmes.
Folha - Essa "traição" ainda acontece?
Sganzerla -
Claro, é um dos principais motivos por que a gente tem produzido tão pouco aqui. "O Bandido da Luz Vermelha", que está fazendo 30 anos, estreou em novembro de 68 e não saiu nem uma notinha na imprensa. Nem houve uma reprise, ninguém dava nada por ele. Dos que foram promovidos, ninguém mais fala nada.
Há certas verdades que surgem como blasfêmias e terminam como superstições. Isso para mim é o resumo da história. Acho que o Brasil merece um cinema melhor. Estamos esperando incentivos durante todo o ano, é preciso liberar isso imediatamente.
Folha - Para quem você dá nota dez hoje?
Sganzerla -
(O cineasta Hector) Babenco. Ele é ótimo. O filme dele é espetacular, vi em Cannes. Parece a história de todo mundo.



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