São Paulo, sexta, 4 de dezembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

FORNADA DO MILÊNIO
"Help"

GERALD THOMAS
em Nova York

² Woody Allen nunca tinha me feito chorar. Mas, depois de passar duas horas gargalhando, a última cena de "Celebrity" chocou, assustou e me deixou aos prantos. Quando as luzes do cinema se acenderam, eu vi que não estava só. O povo continuou sentado, boquiaberto, com lágrimas nos olhos. Isso, no East Village (centro mundial do cinismo cult pop), não é um acontecimento comum. Como? O que aconteceu?
Essa mudança radical de Woody Allen não é uma camuflagem ou simplesmente uma nova fase de sua carreira. Encaixá-la em qualquer formato seria trair a própria trajetória perversa que Allen construiu para chegar a essa mudança.
Ele está desesperado, e seu "Celebrity" termina com um berro ou, literalmente, com a palavra "Help" estampada no céu sobre Manhattan. Esse berro (na verdade, um ataque de lucidez apocalíptico) não é o desfecho previsível e poeticamente niilista a que estamos acostumados. Allen está vivendo seu "fim de mundo", sua impotência perante o sensacionalismo da mídia, das artes, da política e da sociedade em geral. Vítima, ele mesmo, da imprensa marrom, na época em que se divorciou de Mia Farrow, Allen descobriu que virou uma celebridade ainda maior do que era antes, por causa dos escândalos. E essa sociedade de pequenos escândalos parece estar asfixiando Woody Allen.
Raivoso? De jeito nenhum. Engraçado como nunca!
Aliás, no melhor estilo da labirintite conceitual da arte de vanguarda deste século, Allen, desde a cena inicial, revela os mecanismos e desnuda a técnica que vai nos emocionar mais tarde. Já na primeiríssima cena, vemos a cena final em construção. Ela mostra um avião escrevendo, com fumaça, a tal palavra -"Help"- no céu da cidade. Mas, inocente, o espectador não sabe como ela será usada e não pressente a emoção que ela causará.
Em "Celebrity", Woody Allen parodia todos aqueles que parodiaram este século. Desde Andy Warhol (um vigarista assumido e cult) até Donald Trump (um vigarista que adoraria ser levado a sério), Woody Allen coloca suas "vítimas" debaixo da lente de um cristão descrente.
Peraí!!! Woody Allen cristão? Isso é possível? Será que a fantasia escondida de Woody Allen era se ver envolvido num mundo de cristãos? O que mais surpreende nesse novo e sensual Woody Allen é a falta de vergonha em explorar a emoção cristã, assim como a mídia sensacionalista a explora.
Essa emoção -tão real e tão assustadora- tem seu mecanismo tão exposto desde a cena que abre o filme, em que Allen se protege de possíveis acusações de ser um "cineasta demagógico" ou de querer simular o oportunismo de um jovem idealista que ainda acredita na "glorificação da relação humana". Não. Sublinhada pela "5ª Sinfonia", de Beethoven (conhecida por ser o berro de um surdo), a emoção causada pela cena final de "Celebrity" comove justamente por não ser panfletária e acerta a platéia em cheio, vulnerabilizada pelo riso convulsivo há duas horas.
É cruel esse novo Woody Allen!
Levemente inspirado em "Noite Americana", de François Truffaut, Allen usa e abusa de seu brilhantismo só para poder denunciá-lo como impotente diante da enfraquecida identidade do homem moderno, com seu ritual de horrores, a televisão. Assim, numa espiral de metalinguagens, Allen acaba enfraquecido por sua própria denúncia e se sente livre para emigrar para o mundo cristão que tanto estranhou a vida toda.
A espiral de metalinguagens e significados começa com o próprio Woody Allen, o ator, aquele que representa o personagem Woody Allen, presente em quase todos os seus filmes. Claro, geralmente esse personagem muda de nome e de profissão, mas é sempre um judeu. Allen construiu meticulosamente seu "personagem de todos os tempos", com parâmetros e moldes no típico judeu de Brighton Beach ou Crown Heights, no Brooklyn. Perplexo com seu tamanho infinitesimal perante as grandes (e pequenas) questões humanas, chocado com a beleza inalcançável de uma mulher e que gagueja e despeja uma verborrágica tentativa de consertar (e se vingar) de tudo aquilo que o inferniza desde o início de sua vida, isto é, a sua feiúra, seu anti-heroísmo, o fracassado em potencial.
Mas em "Celebrity" existem mais camadas, feridas mais profundas. Quem fala agora é uma espécie de personagem-espião, um "crossdresser", alguém feito de outra matéria e crença que ele próprio, mas que soa e atua igual ao próprio Woody Allen. Esse alguém é uma imitação, ou como diz uma frase do filme, "uma cópia de uma réplica" do próprio Woody Allen, e vem na forma de Kenneth Branagh.
Chocante em si, o próprio casting do jovem ator britânico no papel de seu homônimo cristão chega a ser arrepiante, pois ele soa, age, atua igual ao autor- diretor. E Diane Keaton também está lá, com seu homônimo cristão. Estão todos lá, só que cristãos. É quase o mesmo mundo de sempre, os mesmos protocolos sociais, só que tudo cristão.
São mais que simples personagens. Esses "clones" dos personagens familiares são verdadeiros fantasmas, espectros cômicos que ali debatem as questões até hoje proibidas a Allen, por ele ser judeu. E, assim como nos seus filmes anteriores, os clones cristãos também se perdem na complexa teia de verdades e mentiras dos mortais.
"Celebrity" é uma espécie de obra de arte total, que já nasce com sua trajetória predestinada e inclui sua própria morte e autópsia. Perplexos, estamos enxugando as lágrimas diante do corpo de Woody Allen quando nos damos conta de que Woody Allen teve que dirigir o seu homônimo dando o berro que deveria ter sido o seu.
Enquanto nos levantamos de nossas poltronas, ainda atônitos, percebemos que caímos, isso sim, num dos mais belos truques que a encenação dramática pode trazer. Caímos numa emboscada digna dos mais sofisticados desvios e transtornos de rota que um enredo tragicômico pode mostrar, algo encontrável somente no "the best of" Pirandello ou, por que não?, Shakespeare. Não, não estou exagerando. O objetivo de Woody Allen está claro desde o início do filme, mas nós nos recusamos a enxergá-lo.
Contando com nossa recusa, Allen constrói (ou desconstrói) sua poesia deliberadamente antipoética e, por meio de uma simbologia herética e calculada, ele nos transforma em testemunhas do seu pedido de ajuda. E nos faz de cúmplices em tudo que há de mais perverso neste mundo cão sensacionalista e de consumo, que o obriga a nos fazer rir durante duas horas antes de nos poder fazer chorar por um minuto.
²

E-mail: geraldthomas@uol.com.br



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.