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FORNADA DO MILÊNIO
"Help"
GERALD THOMAS
em Nova York
²
Woody Allen nunca tinha me
feito chorar. Mas, depois de passar duas horas gargalhando, a
última cena de "Celebrity" chocou, assustou e me deixou aos
prantos. Quando as luzes do cinema se acenderam, eu vi que
não estava só. O povo continuou sentado, boquiaberto,
com lágrimas nos olhos. Isso, no
East Village (centro mundial do
cinismo cult pop), não é um
acontecimento comum. Como?
O que aconteceu?
Essa mudança radical de
Woody Allen não é uma camuflagem ou simplesmente uma
nova fase de sua carreira. Encaixá-la em qualquer formato
seria trair a própria trajetória
perversa que Allen construiu
para chegar a essa mudança.
Ele está desesperado, e seu
"Celebrity" termina com um
berro ou, literalmente, com a
palavra "Help" estampada no
céu sobre Manhattan. Esse berro (na verdade, um ataque de
lucidez apocalíptico) não é o
desfecho previsível e poeticamente niilista a que estamos
acostumados. Allen está vivendo seu "fim de mundo", sua impotência perante o sensacionalismo da mídia, das artes, da
política e da sociedade em geral. Vítima, ele mesmo, da imprensa marrom, na época em
que se divorciou de Mia Farrow,
Allen descobriu que virou uma
celebridade ainda maior do que
era antes, por causa dos escândalos. E essa sociedade de pequenos escândalos parece estar
asfixiando Woody Allen.
Raivoso? De jeito nenhum.
Engraçado como nunca!
Aliás, no melhor estilo da labirintite conceitual da arte de
vanguarda deste século, Allen,
desde a cena inicial, revela os
mecanismos e desnuda a técnica que vai nos emocionar mais
tarde. Já na primeiríssima cena,
vemos a cena final em construção. Ela mostra um avião escrevendo, com fumaça, a tal palavra -"Help"- no céu da cidade. Mas, inocente, o espectador
não sabe como ela será usada e
não pressente a emoção que ela
causará.
Em "Celebrity", Woody Allen
parodia todos aqueles que parodiaram este século. Desde
Andy Warhol (um vigarista assumido e cult) até Donald
Trump (um vigarista que adoraria ser levado a sério), Woody
Allen coloca suas "vítimas" debaixo da lente de um cristão
descrente.
Peraí!!! Woody Allen cristão?
Isso é possível? Será que a fantasia escondida de Woody Allen
era se ver envolvido num mundo de cristãos? O que mais surpreende nesse novo e sensual
Woody Allen é a falta de vergonha em explorar a emoção cristã, assim como a mídia sensacionalista a explora.
Essa emoção -tão real e tão
assustadora- tem seu mecanismo tão exposto desde a cena
que abre o filme, em que Allen
se protege de possíveis acusações de ser um "cineasta demagógico" ou de querer simular o
oportunismo de um jovem idealista que ainda acredita na
"glorificação da relação humana". Não. Sublinhada pela "5ª
Sinfonia", de Beethoven (conhecida por ser o berro de um
surdo), a emoção causada pela
cena final de "Celebrity" comove justamente por não ser panfletária e acerta a platéia em
cheio, vulnerabilizada pelo riso
convulsivo há duas horas.
É cruel esse novo Woody
Allen!
Levemente inspirado em
"Noite Americana", de François
Truffaut, Allen usa e abusa de
seu brilhantismo só para poder
denunciá-lo como impotente
diante da enfraquecida identidade do homem moderno, com
seu ritual de horrores, a televisão. Assim, numa espiral de metalinguagens, Allen acaba enfraquecido por sua própria denúncia e se sente livre para emigrar para o mundo cristão que
tanto estranhou a vida toda.
A espiral de metalinguagens e
significados começa com o próprio Woody Allen, o ator, aquele que representa o personagem
Woody Allen, presente em quase todos os seus filmes. Claro,
geralmente esse personagem
muda de nome e de profissão,
mas é sempre um judeu. Allen
construiu meticulosamente seu
"personagem de todos os tempos", com parâmetros e moldes
no típico judeu de Brighton
Beach ou Crown Heights, no
Brooklyn. Perplexo com seu tamanho infinitesimal perante as
grandes (e pequenas) questões
humanas, chocado com a beleza inalcançável de uma mulher
e que gagueja e despeja uma
verborrágica tentativa de consertar (e se vingar) de tudo
aquilo que o inferniza desde o
início de sua vida, isto é, a sua
feiúra, seu anti-heroísmo, o fracassado em potencial.
Mas em "Celebrity" existem
mais camadas, feridas mais
profundas. Quem fala agora é
uma espécie de personagem-espião, um "crossdresser", alguém
feito de outra matéria e crença
que ele próprio, mas que soa e
atua igual ao próprio Woody
Allen. Esse alguém é uma imitação, ou como diz uma frase do
filme, "uma cópia de uma réplica" do próprio Woody Allen, e
vem na forma de Kenneth Branagh.
Chocante em si, o próprio casting do jovem ator britânico no
papel de seu homônimo cristão
chega a ser arrepiante, pois ele
soa, age, atua igual ao autor-
diretor. E Diane Keaton também está lá, com seu homônimo
cristão. Estão todos lá, só que
cristãos. É quase o mesmo mundo de sempre, os mesmos protocolos sociais, só que tudo cristão.
São mais que simples personagens. Esses "clones" dos personagens familiares são verdadeiros fantasmas, espectros cômicos que ali debatem as questões
até hoje proibidas a Allen, por
ele ser judeu. E, assim como nos
seus filmes anteriores, os clones
cristãos também se perdem na
complexa teia de verdades e
mentiras dos mortais.
"Celebrity" é uma espécie de
obra de arte total, que já nasce
com sua trajetória predestinada e inclui sua própria morte e
autópsia. Perplexos, estamos
enxugando as lágrimas diante
do corpo de Woody Allen quando nos damos conta de que
Woody Allen teve que dirigir o
seu homônimo dando o berro
que deveria ter sido o seu.
Enquanto nos levantamos de
nossas poltronas, ainda atônitos, percebemos que caímos, isso sim, num dos mais belos truques que a encenação dramática pode trazer. Caímos numa
emboscada digna dos mais sofisticados desvios e transtornos
de rota que um enredo tragicômico pode mostrar, algo encontrável somente no "the best of"
Pirandello ou, por que não?,
Shakespeare. Não, não estou
exagerando. O objetivo de
Woody Allen está claro desde o
início do filme, mas nós nos recusamos a enxergá-lo.
Contando com nossa recusa,
Allen constrói (ou desconstrói)
sua poesia deliberadamente antipoética e, por meio de uma
simbologia herética e calculada, ele nos transforma em testemunhas do seu pedido de ajuda. E nos faz de cúmplices em
tudo que há de mais perverso
neste mundo cão sensacionalista e de consumo, que o obriga a
nos fazer rir durante duas horas
antes de nos poder fazer chorar
por um minuto.
²
E-mail: geraldthomas@uol.com.br
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