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CRÍTICA
Cineasta transforma autor em sátiro sedutor e incorrigível
TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para alguns, ele foi o espírito mais livre e lúcido que já
existiu. Para outros, o mais baixo,
o mais infame e depravado. Seu
nome virou sinônimo de maldade, mas sua arte sobreviveu a séculos de injúrias e censura para se
afirmar em nome da perfeita felicidade libertina.
Controversa até mesmo para os
estudiosos, a figura do marquês
de Sade tornou-se, no imaginário
ocidental, uma espécie de mito do
mal. Ciente dessa imagem algo
monstruosa que dele foi feita, o
diretor Philip Kaufman chega a
criar um certo suspense em torno
da primeira aparição do protagonista em seu filme.
Mas o Sade que ele acaba nos
apresentando, um libertino maltrapilho e teatral interpretado por
Geoffrey Rush, não tem nada de
sádico. Antes o contrário: ele é
mais vítima do que algoz. Rush
persegue uma personalidade narcisista (sendo ao mesmo tempo
sarcástico e infantil, sedutor e
egoísta) que tem o dom de controlar todos os que estão à sua volta, mas o roteiro privilegia a imagem de um sátiro incorrigível que
sofreu todo o tipo de violência por
voltar sua pena contra os falsos
moralistas de plantão -trata-se
aqui de um aristocrata falido que
consome, em sua verve subversiva, a vingança dos plebeus.
A produção não é irrepreensível
(a fotografia é pobre, a cenografia
e os figurinos são invariavelmente
descuidados), mas o roteiro e a direção de atores, as prioridades de
Kaufman, um emérito adaptador
de obras literárias, sustentam
muito bem o filme. Baseado numa peça de Doug Wright (adaptada pelo próprio), o filme se detém
nos últimos anos da vida do marquês, quando, depois de sobreviver, encarcerado, ao período de
terror da Revolução Francesa, ele
acabou confinado, a mando de
Napoleão, no manicômio dirigido pelo bondoso abade Coulmier.
Segundo os anais, Coulmier,
um eclesiasta progressista que
inovou o tratamento de loucos
em sua época com métodos menos desumanos, era corcunda e
anão. Na adaptação, no entanto,
ele se tornou um jovem atraente
(Joaquin Phoenix) que tenta salvar a alma de Sade enquanto este
busca despertar os recalcados instintos sexuais do padre.
Entre os dois, há Madeleine
(Kate Winslet), a lavadeira que
trafica os contos proibidos de Sade. Ela teria sido a última amante
do marquês, mas, na adaptação
de Wright, Madeleine foge do velho libertino para flertar com o jovem padre numa história de amor
que remonta, explicitamente, aos
enredos dos contos sadianos.
O filme de Kaufman encara os
escritos de Sade ora como (literalmente) incendiários e perigosos,
ora como libertários (lendo "Justine", a mulher do personagem de
Michael Caine, um psiquiatra verdadeiramente sádico enviado ao
manicômio para coibir Sade, torna-se livre), deixando aparentemente de se posicionar no velho
embate censura versus liberdade
de expressão. No entanto, o filme
nos fala de um pensamento que
não pode ser confinado e de um
espírito que prolifera.
É assim que, se lhe tomam a pena, Sade substitui a tinta pelo vinho; e, se lhe tomam o vinho, cria
uma escrita de sangue... e de fezes.
E, se não pode publicar suas histórias, ele as dissemina boca a boca,
mesmo que a transmissão oral
aqui se faça entre loucos.
Contos Proibidos do Marquês
de Sade
Quills
Direção: Philip Kaufman
Produção: EUA, 2000
Com: Geoffrey Rush, Joaquin Phoenix,
Kate Winslet, Michael Caine
Quando: a partir de hoje nos cines Belas
Artes, Eldorado, Iguatemi e circuito
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