São Paulo, sexta-feira, 05 de janeiro de 2001

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CRÍTICA


Cineasta transforma autor em sátiro sedutor e incorrigível



TIAGO MATA MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA



Para alguns, ele foi o espírito mais livre e lúcido que já existiu. Para outros, o mais baixo, o mais infame e depravado. Seu nome virou sinônimo de maldade, mas sua arte sobreviveu a séculos de injúrias e censura para se afirmar em nome da perfeita felicidade libertina.
Controversa até mesmo para os estudiosos, a figura do marquês de Sade tornou-se, no imaginário ocidental, uma espécie de mito do mal. Ciente dessa imagem algo monstruosa que dele foi feita, o diretor Philip Kaufman chega a criar um certo suspense em torno da primeira aparição do protagonista em seu filme.
Mas o Sade que ele acaba nos apresentando, um libertino maltrapilho e teatral interpretado por Geoffrey Rush, não tem nada de sádico. Antes o contrário: ele é mais vítima do que algoz. Rush persegue uma personalidade narcisista (sendo ao mesmo tempo sarcástico e infantil, sedutor e egoísta) que tem o dom de controlar todos os que estão à sua volta, mas o roteiro privilegia a imagem de um sátiro incorrigível que sofreu todo o tipo de violência por voltar sua pena contra os falsos moralistas de plantão -trata-se aqui de um aristocrata falido que consome, em sua verve subversiva, a vingança dos plebeus.
A produção não é irrepreensível (a fotografia é pobre, a cenografia e os figurinos são invariavelmente descuidados), mas o roteiro e a direção de atores, as prioridades de Kaufman, um emérito adaptador de obras literárias, sustentam muito bem o filme. Baseado numa peça de Doug Wright (adaptada pelo próprio), o filme se detém nos últimos anos da vida do marquês, quando, depois de sobreviver, encarcerado, ao período de terror da Revolução Francesa, ele acabou confinado, a mando de Napoleão, no manicômio dirigido pelo bondoso abade Coulmier.
Segundo os anais, Coulmier, um eclesiasta progressista que inovou o tratamento de loucos em sua época com métodos menos desumanos, era corcunda e anão. Na adaptação, no entanto, ele se tornou um jovem atraente (Joaquin Phoenix) que tenta salvar a alma de Sade enquanto este busca despertar os recalcados instintos sexuais do padre.
Entre os dois, há Madeleine (Kate Winslet), a lavadeira que trafica os contos proibidos de Sade. Ela teria sido a última amante do marquês, mas, na adaptação de Wright, Madeleine foge do velho libertino para flertar com o jovem padre numa história de amor que remonta, explicitamente, aos enredos dos contos sadianos.
O filme de Kaufman encara os escritos de Sade ora como (literalmente) incendiários e perigosos, ora como libertários (lendo "Justine", a mulher do personagem de Michael Caine, um psiquiatra verdadeiramente sádico enviado ao manicômio para coibir Sade, torna-se livre), deixando aparentemente de se posicionar no velho embate censura versus liberdade de expressão. No entanto, o filme nos fala de um pensamento que não pode ser confinado e de um espírito que prolifera.
É assim que, se lhe tomam a pena, Sade substitui a tinta pelo vinho; e, se lhe tomam o vinho, cria uma escrita de sangue... e de fezes. E, se não pode publicar suas histórias, ele as dissemina boca a boca, mesmo que a transmissão oral aqui se faça entre loucos.



Contos Proibidos do Marquês de Sade
Quills
   
Direção: Philip Kaufman
Produção: EUA, 2000
Com: Geoffrey Rush, Joaquin Phoenix, Kate Winslet, Michael Caine
Quando: a partir de hoje nos cines Belas Artes, Eldorado, Iguatemi e circuito




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