São Paulo, sábado, 05 de janeiro de 2002

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A nova queda da Bastilha

Dono da Vivendi-Universal, segundo conglomerado de mídia do mundo, critica "exceção cultural" na França e lança debate sobre financiamento de cinema

Divulgação
Audrey Tatou em cena de "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", visto por 8 milhões na França e o maior sucesso do país junto aos americanos em mais de 20 anos


ALCINO LEITE NETO
DE PARIS

Dezembro trouxe uma excelente e uma péssima notícia para a cultura francesa.
A boa nova foi a seguinte: 2001 representou o melhor período do cinema da França em décadas. Os filmes produzidos no país abocanharam 41% do mercado nacional, contra 28,5% em 2000. O cinema americano perdeu 12,2% do mercado francês -caindo de 62,2% (em 2000) para 50% dos ingressos, segundo dados divulgados anteontem pelo Centro Nacional de Cinematografia.
O arrasa-quarteirões do ano é "O Fabuloso Destino de Amélie Poulain", do diretor Jean-Pierre Jeunet ("Alien 4" e "Delicatessen"), que conta até agora com mais de 8 milhões de espectadores na França e 17 milhões no exterior.
Agora, a má notícia. O principal empresário francês de comunicações, Jean-Marie Messier, presidente da Vivendi-Universal, fez o mais ruidoso ataque ao sistema de proteção estatal da cultura no país, ao afirmar, em Nova York, que "a exceção cultural franco-francesa está morta".
A declaração explodiu no último dia 17, quando J2M (como foi apelidado) anunciou a compra da companhia de cinema e televisão USA Networks (produtora de "Traffic"), fazendo da Vivendi-Universal o segundo conglomerado de mídia do mundo, depois da AOL-Time-Warner.
J2M é dono dos estúdios Universal ("Gladiador", "Jurassic Park 3"), do StudioCanal ("Billy Elliot"), da Universal Music (Eminem, Sting, Deutsche Grammophon), das editoras Larousse e Houghton Mifflin (a maior de livros didáticos nos EUA), da revista "L'Express" e do Canal Plus, o parceiro fundamental do cinema francês na televisão.
A "exceção cultural" não é uma construção abstrata. Trata-se de um princípio político-econômico defendido há décadas pelos franceses junto à Organização Mundial do Comércio e que, em 1993, se transformou em norma no âmbito da União Européia.
Por meio dela, os bens culturais não são tratados como as demais mercadorias, podendo assim se beneficiar de subsídios públicos, sem que se caracterize a ação como protecionismo. O objetivo é garantir a produção audiovisual local contra a hegemonia americana no continente europeu.
A "exceção cultural" permitiu à França financiar o cinema do país ao obrigar as emissoras de TV a exibirem 40% de filmes franceses, por exemplo, e o Canal Plus de Messier a destinar 20% de sua receita à produção cinematográfica, até 2004, num total anual de 145,5 milhões de euros (cerca de R$ 298 milhões). A Grã-Bretanha dispõe de um outro sistema de proteção (leia abaixo).
Muito criticada pela direita no início, tempo de vacas magras para o cinema, a "exceção cultural" agora é uma unanimidade no meio político e cultural, quando seus frutos começam a aparecer, com o sucesso dos filmes.
Raros saíram em defesa de Messier quando sua frase bombardeou Paris. Foi uma das maiores polêmicas na França em anos, com inúmeros atirando contra o Golias J2M.
O jornal "Le Monde" publicou editorial no dia 18 de dezembro, afirmando: "Dono dos estúdios Universal, Jean-Marie Messier está na linha de frente de um grupo membro da Motion Picture Association of America (MPAA), o lobby da indústria cinematográfica americana. O objetivo obsessivo da MPAA é o seguinte: desmantelar os dispositivos de ajuda ao cinema postos em prática na França há mais de 40 anos".
A ministra francesa da Cultura, Catherine Tasca, afirmou: "A exceção cultural se tornou para os europeus e para outros continentes a defesa da diversidade, mais que nunca necessária diante das pressões do mercado".
Os demais jornais e as principais revistas abordaram enfaticamente o assunto, da semanal "Telérama" à célebre "Cahiers du Cinéma" (capa de janeiro).
Em 3 de janeiro, Messier publicou um anúncio no mesmo "Le Monde" defendendo a diversidade cultural. Mas o mal-estar já estava instalado. E o cinema francês certamente já não será o mesmo depois que J2M anunciou a crise da "exceção cultural", convidando o país a enfrentar com seus filmes a realidade do mercado de cinema, hegemonicamente norte-americano .



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