São Paulo, sábado, 05 de janeiro de 2002

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Obra antecede amadurecimento do poeta

FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL

"O Diário de Florença" não é um caderno de viagem comum. É, mais acertadamente, um relato da experiência da descoberta do Renascimento e, mais ainda, compilação de reflexões sobre a arte em geral pelo jovem Rilke -nascido em 1875; em abril de 1898, quando escreve o livro, não completara ainda 23 anos.
Igualmente importante é frisar para quem Rilke escreve. Esse diário ou relato é, de certa forma, como uma longa carta a Lou Andreas-Salomé (1861-1937), escritora que, pela beleza e ousadia, abalou o circuito intelectual europeu no "fin-de-siècle" e cuja vida cruzou não só a do poeta, mas também a de Nietzsche e Freud.
"Se já estou suficientemente calmo e maduro para iniciar o diário que pretendo passar às tuas mãos, não o sei. Sinto, porém, que minha alegria permanece impessoal e sem brilho enquanto dela não participares como confidente -ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera sobre esta alegria em um livro que te pertence", diz Rilke, à guisa de introdução, dirigindo-se a Salomé, que conhecera um ano antes.
Antecedendo o trecho acima, meia dúzia de breves poemas fazem as vezes de prefácio. No primeiro, Rilke fala de ser "banido" da "região hibernal querida" -sua, porque nascido na tcheca Praga, e de Salomé, vinda da russa São Petersburgo- para a cálida Itália. Mas, em mais de um sentido, o "Diário de Florença" representa a primavera do poeta; a metáfora da estação como prelúdio ao amadurecimento do verão surge em vários momentos do livro.
"As grandes obras dele foram criadas depois; a primavera, nesse caso, é um florescer inclusive da alma de Rilke", aponta a tradutora Marion Fleischer, 61.
Professora-titular de língua e literatura alemã da Universidade de São Paulo, hoje aposentada, a autora da versão brasileira do "Diário" diz que o poeta "foi amadurecendo, mas sempre baseado em conceitos de arte que já estão todos delineados" no livro.
Levando na bagagem os conhecimentos de italiano e história da arte que fora buscar incentivado por Salomé, Rilke migra de descrições impressionistas -de edifícios, ruas, pátios, quadros- a abstrações sobre a atitude do viajante, a relação do artista com o público e a fruição da obra de arte.
"Ele tem uma posição de desprezo perante o gosto popular e diz que poucos conseguem compreender o que é a arte. Isso é, se quiser, típico da época, um certo elitismo", frisa a tradutora.
"Acontece que às vezes a arte machuca o povão... e então: Ah, parti de Florença naqueles dias em que jovens amotinados jogaram pedras na Loggia dei Lanzi. A arte percorre o caminho que conduz solitários em direção a outros solitários, passando por cima do povo", escreve Rilke.
Para ele, o fazer artístico é, acima de tudo, rota para "olhar para dentro de si mesmo". "Muitas vezes sinto uma nostalgia tão grande de mim mesmo. Eu sei que o caminho ainda é longo; mas nos meus melhores sonhos entrevejo o dia em que poderei me acolher."
Mais do que as ruas de Florença, o principal retrato que salta do livro é o desse Rilke "em botão".
Afinal, já adverte o autor: "Não sei se, desta maneira, conseguirei transmitir-te uma imagem de Florença (...); de qualquer maneira, encontrei em Florença este pedaço de mim mesmo, e isto não pode ter acontecido por acaso. Ademais, não estás esperando de mim um guia turístico, nem tampouco um catálogo completo, sem lacunas e cronologicamente ordenado, não é mesmo?".



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