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Obra antecede amadurecimento do poeta
FRANCESCA ANGIOLILLO
DA REPORTAGEM LOCAL
"O Diário de Florença" não é
um caderno de viagem comum.
É, mais acertadamente, um relato
da experiência da descoberta do
Renascimento e, mais ainda,
compilação de reflexões sobre a
arte em geral pelo jovem Rilke
-nascido em 1875; em abril de
1898, quando escreve o livro, não
completara ainda 23 anos.
Igualmente importante é frisar
para quem Rilke escreve. Esse diário ou relato é, de certa forma, como uma longa carta a Lou Andreas-Salomé (1861-1937), escritora que, pela beleza e ousadia,
abalou o circuito intelectual europeu no "fin-de-siècle" e cuja vida
cruzou não só a do poeta, mas
também a de Nietzsche e Freud.
"Se já estou suficientemente calmo e maduro para iniciar o diário
que pretendo passar às tuas mãos,
não o sei. Sinto, porém, que minha alegria permanece impessoal
e sem brilho enquanto dela não
participares como confidente
-ao menos por intermédio de alguma anotação íntima e sincera
sobre esta alegria em um livro que
te pertence", diz Rilke, à guisa de
introdução, dirigindo-se a Salomé, que conhecera um ano antes.
Antecedendo o trecho acima,
meia dúzia de breves poemas fazem as vezes de prefácio. No primeiro, Rilke fala de ser "banido"
da "região hibernal querida"
-sua, porque nascido na tcheca
Praga, e de Salomé, vinda da russa
São Petersburgo- para a cálida
Itália. Mas, em mais de um sentido, o "Diário de Florença" representa a primavera do poeta; a metáfora da estação como prelúdio
ao amadurecimento do verão surge em vários momentos do livro.
"As grandes obras dele foram
criadas depois; a primavera, nesse
caso, é um florescer inclusive da
alma de Rilke", aponta a tradutora Marion Fleischer, 61.
Professora-titular de língua e literatura alemã da Universidade
de São Paulo, hoje aposentada, a
autora da versão brasileira do
"Diário" diz que o poeta "foi amadurecendo, mas sempre baseado
em conceitos de arte que já estão
todos delineados" no livro.
Levando na bagagem os conhecimentos de italiano e história da
arte que fora buscar incentivado
por Salomé, Rilke migra de descrições impressionistas -de edifícios, ruas, pátios, quadros- a
abstrações sobre a atitude do viajante, a relação do artista com o
público e a fruição da obra de arte.
"Ele tem uma posição de desprezo perante o gosto popular e
diz que poucos conseguem compreender o que é a arte. Isso é, se
quiser, típico da época, um certo
elitismo", frisa a tradutora.
"Acontece que às vezes a arte
machuca o povão... e então: Ah,
parti de Florença naqueles dias
em que jovens amotinados jogaram pedras na Loggia dei Lanzi. A
arte percorre o caminho que conduz solitários em direção a outros
solitários, passando por cima do
povo", escreve Rilke.
Para ele, o fazer artístico é, acima de tudo, rota para "olhar para
dentro de si mesmo". "Muitas vezes sinto uma nostalgia tão grande de mim mesmo. Eu sei que o
caminho ainda é longo; mas nos
meus melhores sonhos entrevejo
o dia em que poderei me acolher."
Mais do que as ruas de Florença,
o principal retrato que salta do livro é o desse Rilke "em botão".
Afinal, já adverte o autor: "Não
sei se, desta maneira, conseguirei
transmitir-te uma imagem de
Florença (...); de qualquer maneira, encontrei em Florença este pedaço de mim mesmo, e isto não
pode ter acontecido por acaso.
Ademais, não estás esperando de
mim um guia turístico, nem tampouco um catálogo completo,
sem lacunas e cronologicamente
ordenado, não é mesmo?".
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