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LIVRO/"A TEMPESTADE"
Autor espanhol esboça subterrâneos de Veneza
RODRIGO PETRONIO
FREE-LANCE PARA A FOLHA
Em um canto, com olhar absorto, uma mulher seminua
amamenta uma criança recém-nascida. No fundo, uma grande
tempestade se anuncia, crispando
o céu de raios e sulcando o vilarejo com o seu jogo de luzes e sombras. Mais à frente, uma ponte e
um riacho calmo se anunciam, ao
fim do qual se divisa uma ruína,
com suas colunas carcomidas pelo tempo.
À esquerda, um jovem peregrino apoiado em um bastão fita o
infinito, mas também parece observar, com lascívia e de soslaio, a
mulher sentada do outro lado, hesitante em seu gesto maternal.
É basicamente essa a composição da tela "A Tempestade" do
pintor veneziano Giorgione (c.
1478-1510). Toda a cena é trespassada por um clima sombrio e uma
atmosfera de prognósticos de difícil compreensão.
E é a partir dessa paisagem, desse cenário e desses personagens
que o escritor espanhol Juan Manuel de Prada arquitetou o seu romance homônimo, usando o tema histórico e pictórico como
pretexto para um enredo que mistura investigação artística e narrativa policial.
O livro de Prada é amarrado a
partir de um jogo vertiginoso de
coincidências, onde a viagem de
um jovem especialista em arte da
Renascença a Veneza se vê comprometida pelo testemunho de
um assassinato cuja vítima é justamente um falsificador e ladrão
de obras de arte, Fábio Valenzin.
Entre a vida e a arte, eis que é
abolido o grande hiato: o jovem
Ballesteros é engolfado em um jogo de conspirações e preso em
uma rede infinita de falsificações
que a própria realidade tece.
A cada momento descobre uma
nova peça desse xadrez enigmático, o que lhe revela uma nova versão do caráter daqueles que o cercam e da morte que presenciou.
Velha cidade
Essa trajetória acidentada não é
gratuita. Serve para introduzir o
leitor no coração sombrio da velha cidade italiana, não aquela vista na vitrine turística ou exaltada
como sede do milagre artístico e
arquitetônico universal, mas uma
cidade prestes a ser engolida pelas
enchentes, submersa em disputas
de poder, com rivalidades sórdidas envolvendo a arte e seu prestígio econômico e social, e um roteiro de paixões ilícitas que nunca
vêm à luz.
Subjaz a esse percurso policial
uma dura crítica aos limites de interpretação da arte. Não só: também à própria validade da teoria
sobre a criação e a fruição artísticas. Aos poucos o protagonista
vai reconhecendo nos personagens da tela de Giorgione traços
dos personagens de sua vida real.
Essas descobertas encerram algo de trágico: é como se o mestre
italiano só pudesse tê-la concebido estando envolvido em uma
mesma natureza de corrupção e
conluios, o que destrói a possibilidade de uma visão científica ou
isenta do fato estético. Essa crítica,
no entanto, longe de obstar a reflexão, liberta-nos para um terreno inexplorado da investigação
artística.
Meditação
O leitor pode pensar que se trata
de mais um romance histórico
com ritmo policial ditado pela
moda. Não é o caso. Ele fornece
mais uma meditação profunda
sobre o tema do que uma série de
pistas e charadas a serem decifradas em chave culta.
A habilidade técnica de Prada é
admirável, e a intriga, surpreendente, embora peque em alguns
momentos, ora pelo sentimentalismo (entre Ballesteros e Chiara),
ora pelo fato de a narrativa lembrar em alguns pontos os roteiros
e um tipo de enquadramento do
cinema-padrão, o que a empobrece.
Isso não macula os jogos entre
verdade e beleza que encontramos em suas páginas. E aqui é
inevitável não ouvir ecos de Oscar
Wilde. No cerne da obra, a fronteira entre a ilusão e o real, entre a
representação e o fato, entre a cena e os personagens se esvai para
compor um outro território, onde
a arte passa a ser vista como uma
religião (é preciso crer e vivê-la
para criar), e a vida, paradoxalmente, como um de seus desdobramentos, o que não a desmerece, mas sim lhe confere novos
sentidos.
Afinal, para lembrar o vate, viver não é preciso. O que é preciso
é criar.
A Tempestade
Autor: Juan Manuel de Prada
Editora: Best Seller
Tradução: Luiz de Araújo
Quanto: R$ 35 (320 pág.)
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