São Paulo, segunda-feira, 05 de janeiro de 2004

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NELSON ASCHER

Livre-arbítrio

Quando, em meados dos anos 80, coordenava a seção de livros da Ilustrada, recebi as provas de um livro intitulado trágica e irresistivelmente: "O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa". O autor, o historiador norte-americano Robert Darnton, escrevera vários outros, mas este, além de ter sido o que o tornou popular entre leitores não especializados, foi seu primeiro a chegar ao Brasil. Lendo por cima alguns ensaios da coletânea, concluí que valeria a pena chamar para esta a atenção dos leitores.
Embora reinasse sobre um território exíguo, minha soberania em seu interior era considerável. Nunca há espaço suficiente para "dar" todos os livros que saem e é normalmente a quem num jornal se ocupa dessa área que cabe selecionar quais serão resenhados e por quem. Ninguém que leve a sério tal trabalho pede a um crítico que fale bem ou mal desse ou daquele autor. Mas quem conhece seus colaboradores tampouco ignora, ao escolher um comentador, qual será, em linhas gerais, seu juízo. E se, aos olhos dos autores, o que conta é sobretudo o veredicto final, a qualidade de uma página ou caderno literário depende antes da honestidade e transparência dos julgamentos.
Convidei um resenhista capaz de escrever um texto inteligente e acessível e publiquei-o com o maior destaque possível. Apesar disso, o livro "não aconteceu". Tanto empenho atraiu, no máximo, algumas dúzias adicionais de interessados, algo que, convenhamos, não é grande coisa. Que fazer para cativar, pelo menos, centenas, para nem falar em milhares? Isso aconteceu com suas publicações posteriores graças provavelmente a duas circunstâncias: estas foram lançadas por uma editora que conquistara boa parte de seu prestígio investindo em obras da nova historiografia, e apareceram numa época em que a comemoração do bicentenário da Revolução Francesa voltara a tornar populares os temas que Darnton abordava.
Minha tentativa seguinte de promover um autor desconhecido, se bem que mais ambiciosa, teve ainda menos sucesso. Após "descobrir" um escritor excelente, o iugoslavo Danilo Kis, dediquei-lhe um número inteiro do Folhetim, o suplemento semanal de cultura da Folha cujo editor eu era então. Se os ensaios originais, a entrevista exclusiva e o conto traduzido despertaram o interesse de certos órgãos de imprensa e de uma editora, nem por isso seduziram o público. Por quê? Talvez a repercussão, alguns anos antes, do tcheco Milan Kundera tivesse saturado o mercado que havia no Brasil para autores do Leste Europeu, ou talvez a obsessão do iugoslavo pela história não encontrasse eco num país como o nosso.
No entretempo, uma obra desdenhada tanto pela grande imprensa como pela intelectualidade tornara-se, sem apoio ou publicidade, um best-seller: "As Brumas de Avalon", de Marion Zimmer Bradley. Mais do que na história francesa ou na ficção política centro-européia, o leitor brasileiro parecia estar interessado num mundo de lendas com toques de mistério e misticismo. Concorde-se ou discorde-se dele, o público fez sua opção por conta própria e valeu-se de seu mais sagrado direito, ou seja, o de comprar com seu dinheiro aquilo que quisesse. Mesmo que as edições de Kis ou Darnton recebessem subsídios governamentais, fossem anunciadas na TV e se tornassem leitura obrigatória do segundo grau, Marion Zimmer Bradley continuaria a batê-los sem dificuldade.
As lições de minhas modestas tentativas de "educar" os leitores se aplicam igualmente ao resto da imprensa escrita e da mídia eletrônica. A influência determinante ou hipnótica dos meios de comunicação é um mito, seja no Brasil ou nos EUA, na Europa Ocidental ou nos antigos países comunistas. Algumas pessoas crêem cegamente no que lhes é dito e algumas desconfiam sistematicamente de tudo. A grande maioria, porém, é adulta o bastante, dispõe de olhos para ver, ouvidos para ouvir e, verificando ou comparando informações diversas, prefere afinal confiar em seu nariz.
Há pouco, por exemplo, toda a imprensa sueca, suas elites nacionais e os formadores locais de opinião que procuraram persuadir os eleitores a aderirem ao euro falharam miseravelmente. Meses atrás a imprensa francesa, dobrando-se unanimemente ao antiamericanismo reflexivo do país, fechou posição opondo-se à invasão do Iraque e hoje, além de seus concidadãos se sentirem traídos pelos jornalistas, o prestígio do governo Chirac anda quase tão baixo na França quanto nos EUA. Uma das organizações noticiosas mais respeitáveis do planeta, a BBC, deixou, entre 2002 e 2003, de lado a objetividade noticiosa para tentar influenciar a opinião dos ingleses e agora se encontra em crise desmoralizante.
O mercado livre de idéias, sem dúvida, trata mal quem desrespeite seus clientes. O curioso é que até sociedades fechadas nos quais o Estado monopoliza as fontes de informação funcionam de modo menos perfeito do que se imaginaria. A população soviética, bombardeada dia a dia pela propaganda oficial, aprendeu aos poucos a achar os fatos debaixo das crostas de mentira e, deixando de lado as linhas impressas, concentrava-se sistematicamente nas entrelinhas.
Se existe hoje em dia um cubano que acredite estar vivendo no paraíso socialista, ele mereceria ganhar o prêmio Lênin. Mais importante do que o mercado livre de idéias, que pode ser às vezes cerceado, continua sendo, portanto, o livre-arbítrio, este sim inerradicável. Quem quer que aposte contra ele terminará sempre perdendo.



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