|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
NELSON ASCHER
Livre-arbítrio
Quando, em meados dos
anos 80, coordenava a seção
de livros da Ilustrada, recebi as
provas de um livro intitulado trágica e irresistivelmente: "O Grande Massacre de Gatos e Outros
Episódios da História Cultural
Francesa". O autor, o historiador
norte-americano Robert Darnton, escrevera vários outros, mas
este, além de ter sido o que o tornou popular entre leitores não especializados, foi seu primeiro a
chegar ao Brasil. Lendo por cima
alguns ensaios da coletânea, concluí que valeria a pena chamar
para esta a atenção dos leitores.
Embora reinasse sobre um território exíguo, minha soberania em
seu interior era considerável.
Nunca há espaço suficiente para
"dar" todos os livros que saem e é
normalmente a quem num jornal
se ocupa dessa área que cabe selecionar quais serão resenhados e
por quem. Ninguém que leve a sério tal trabalho pede a um crítico
que fale bem ou mal desse ou daquele autor. Mas quem conhece
seus colaboradores tampouco ignora, ao escolher um comentador, qual será, em linhas gerais,
seu juízo. E se, aos olhos dos autores, o que conta é sobretudo o veredicto final, a qualidade de uma
página ou caderno literário depende antes da honestidade e
transparência dos julgamentos.
Convidei um resenhista capaz
de escrever um texto inteligente e
acessível e publiquei-o com o
maior destaque possível. Apesar
disso, o livro "não aconteceu".
Tanto empenho atraiu, no máximo, algumas dúzias adicionais de
interessados, algo que, convenhamos, não é grande coisa. Que fazer para cativar, pelo menos, centenas, para nem falar em milhares? Isso aconteceu com suas publicações posteriores graças provavelmente a duas circunstâncias: estas foram lançadas por
uma editora que conquistara boa
parte de seu prestígio investindo
em obras da nova historiografia,
e apareceram numa época em
que a comemoração do bicentenário da Revolução Francesa voltara a tornar populares os temas
que Darnton abordava.
Minha tentativa seguinte de
promover um autor desconhecido, se bem que mais ambiciosa,
teve ainda menos sucesso. Após
"descobrir" um escritor excelente,
o iugoslavo Danilo Kis, dediquei-lhe um número inteiro do Folhetim, o suplemento semanal de
cultura da Folha cujo editor eu
era então. Se os ensaios originais,
a entrevista exclusiva e o conto
traduzido despertaram o interesse de certos órgãos de imprensa e
de uma editora, nem por isso seduziram o público. Por quê? Talvez a repercussão, alguns anos
antes, do tcheco Milan Kundera
tivesse saturado o mercado que
havia no Brasil para autores do
Leste Europeu, ou talvez a obsessão do iugoslavo pela história não
encontrasse eco num país como o
nosso.
No entretempo, uma obra desdenhada tanto pela grande imprensa como pela intelectualidade tornara-se, sem apoio ou publicidade, um best-seller: "As Brumas de Avalon", de Marion Zimmer Bradley. Mais do que na história francesa ou na ficção política centro-européia, o leitor brasileiro parecia estar interessado
num mundo de lendas com toques de mistério e misticismo.
Concorde-se ou discorde-se dele, o
público fez sua opção por conta
própria e valeu-se de seu mais sagrado direito, ou seja, o de comprar com seu dinheiro aquilo que
quisesse. Mesmo que as edições de
Kis ou Darnton recebessem subsídios governamentais, fossem
anunciadas na TV e se tornassem
leitura obrigatória do segundo
grau, Marion Zimmer Bradley
continuaria a batê-los sem dificuldade.
As lições de minhas modestas
tentativas de "educar" os leitores
se aplicam igualmente ao resto da
imprensa escrita e da mídia eletrônica. A influência determinante ou hipnótica dos meios de comunicação é um mito, seja no
Brasil ou nos EUA, na Europa
Ocidental ou nos antigos países
comunistas. Algumas pessoas
crêem cegamente no que lhes é dito e algumas desconfiam sistematicamente de tudo. A grande
maioria, porém, é adulta o bastante, dispõe de olhos para ver,
ouvidos para ouvir e, verificando
ou comparando informações diversas, prefere afinal confiar em
seu nariz.
Há pouco, por exemplo, toda a
imprensa sueca, suas elites nacionais e os formadores locais de opinião que procuraram persuadir
os eleitores a aderirem ao euro falharam miseravelmente. Meses
atrás a imprensa francesa, dobrando-se unanimemente ao antiamericanismo reflexivo do país,
fechou posição opondo-se à invasão do Iraque e hoje, além de seus
concidadãos se sentirem traídos
pelos jornalistas, o prestígio do
governo Chirac anda quase tão
baixo na França quanto nos
EUA. Uma das organizações noticiosas mais respeitáveis do planeta, a BBC, deixou, entre 2002 e
2003, de lado a objetividade noticiosa para tentar influenciar a
opinião dos ingleses e agora se encontra em crise desmoralizante.
O mercado livre de idéias, sem
dúvida, trata mal quem desrespeite seus clientes. O curioso é que
até sociedades fechadas nos quais
o Estado monopoliza as fontes de
informação funcionam de modo
menos perfeito do que se imaginaria. A população soviética,
bombardeada dia a dia pela propaganda oficial, aprendeu aos
poucos a achar os fatos debaixo
das crostas de mentira e, deixando de lado as linhas impressas,
concentrava-se sistematicamente
nas entrelinhas.
Se existe hoje em dia um cubano que acredite estar vivendo no
paraíso socialista, ele mereceria
ganhar o prêmio Lênin. Mais importante do que o mercado livre
de idéias, que pode ser às vezes
cerceado, continua sendo, portanto, o livre-arbítrio, este sim
inerradicável. Quem quer que
aposte contra ele terminará sempre perdendo.
Texto Anterior: Música: The Yardbirds volta em CD após 35 anos Próximo Texto: O milagre da multiplicação dos peixes Índice
|