São Paulo, quarta-feira, 05 de janeiro de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

Dimensões do tsunami

Diferentemente de outros desastres e tragédias -o atentado de 11 de Setembro é o exemplo mais óbvio-, o maremoto na Ásia gerou pouquíssimas imagens de impacto. A violência do acontecimento parece desproporcional diante das fotos que o registram: regiões alagadas, vistas de avião, podem, sem dúvida, inspirar consternação, mas não correspondem à dimensão tremenda dos fatos.
Desta vez, até onde eu possa sentir, não se deu a tão criticada "espetacularização" da tragédia. Claro que isso não é, por si mesmo, algo a ser recebido como uma boa notícia; do ponto de vista de quem sofreu com a desgraça, tanto faz, em última análise, se houve ou não espetáculo.
As críticas em torno da "espetacularização" disso ou daquilo às vezes me parecem um pouco suspeitas. Existe, sem dúvida, a possibilidade de se extrair um gozo mórbido (e bom lucro) de cenas exibindo a desgraça alheia. Mas um interdito completo ao que possa haver de emocionante e sensacional numa imagem trágica não teria por que tornar nossa solidariedade às vítimas especialmente intensa ou eficaz.
De qualquer modo, o tsunami se tornou mais assustador, mais incompreensível, mais cruel na medida mesma em que, num sentido muito particular, parece não ter sido visto por ninguém. As ondas imensas que Hollywood produziu, de "O Destino do Poseidon" (1972) a "O Dia Depois de Amanhã", tinham tamanho, forma e, por assim dizer, rosto definido. O próprio fato de que, agora, se usa mais a palavra "tsunami" do que "maremoto" parece simbolizar a estranheza enigmática, traiçoeira, felina, estereotipadamente "oriental" do cataclismo.
Sem nenhuma foto de ondas do tamanho de edifícios, que alguém pudesse identificar de longe com um binóculo -e os registros tirados de satélite, repetidamente publicados nos jornais, deram pouca idéia do tamanho real das coisas-, ficou mais forte, para mim, a sensação de que a desgraça pode ocorrer a qualquer momento. Sempre tive sonhos com maremoto. Raras vezes eram aterrorizantes, trazendo mais uma mistura silenciosa de ameaça e abandono, de atração abissal e insurgência desmedida. Apesar da tragédia, ou melhor, por causa dela, novos tsunamis parecem ainda ocultar-se em algum lugar mais perto do que eu pensava.
A circunstância de que foram atingidas áreas turísticas conta muito, é claro, para a nossa sensação de medo. Entre as vítimas estão pessoas "como nós", isto é, não-vinculadas a nenhuma tradição autóctone de miséria e crônica desgraça. Que se atinjam lugares paradisíacos, eis um fato que só pode contar como uma perfídia a mais da natureza. Aliás, imagino que muita coisa foi destruída justamente porque era "ecologicamente correta": hotéis do tipo Hilton talvez tivessem sorte melhor do que pequenos bangalôs de praia.
Uma foto, entretanto, destaca-se em toda a desgraça. Foi publicada no dia 30 de dezembro e mostra um porto em Banda Aceh, na Indonésia. O que vemos, inicialmente, é apenas uma quantidade enorme de ripas de madeira acumuladas na praia; apenas um caso extremo, diríamos, de poluição das águas. Um colchão xadrez vermelho e preto, alguns recipientes de plástico, se destacam entre os dejetos. É preciso olhar pela terceira vez para notar que a eles se misturam dezenas e dezenas de corpos cinzentos, todos virados de costas, quase tão numerosos quanto os pedaços de madeira.
O horror da cena -como o próprio tsunami- não se exibe à primeira vista, não é inteligível de imediato, talvez nem mesmo se imprima na memória com o vigor das imagens do atentado ao WTC, mas por isso mesmo -ao exigir nossa participação intelectual para ser absorvido- se torna apavorante.
A reação das pessoas diante do 11 de Setembro foi de incredulidade: por mais que se repetissem as cenas dos aviões batendo nas torres, aquilo parecia não ter acontecido. Com aquela foto, que não mostrava o maremoto cinematograficamente, somos nós mesmos -ao interpretá-la, ao decodificá-la aos poucos- que nos convencemos de que a tragédia ocorreu.
O mundo do "espetáculo" talvez tenha, assim, alguma dose de irrealidade a acompanhá-lo. O que não impede ninguém de se solidarizar com as vítimas das torres gêmeas, nem de saber que aquilo de fato aconteceu. Já a foto de Banda Aceh evoca não o cinema-catástrofe, mas certas instalações de arte contemporânea. Sua estranheza, sua horrível realidade talvez sejam menos "midiáticas" do que as cenas do 11 de Setembro; mas a foto não deixa de ter, é claro, uma dimensão estética. Não no sentido de ser bonita ou feia, mas da adequação de sua linguagem, do repertório cultural que pressupõe no espectador, do grau de obviedade ou de opacidade que possua...
Não é o caso de dizer que "tudo é espetáculo", que na mídia tudo vira objeto de fruição e entretenimento. A não ser que voltemos à idéia religiosa de uma proibição total das imagens, sempre está em jogo a forma de apresentá-las. Entre o sensacionalismo e a frieza, a apelação e a tecnicidade, é difícil estabelecer uma linha muito precisa. Essas discussões rapidamente se esgotam na linguagem da repugnância e da condenação moral, mas são sempre -qualquer o lado que se tome nelas- estéticas também.
Falando nisso, o jeito mais fácil que encontrei para dar uma contribuição às vítimas do maremoto foi no site da amazon: www.amazon.com.


Texto Anterior: Análise: Indefinições marcam celular com TV no Brasil
Próximo Texto: Livro: Literatura e rock'n'roll se cruzam na rebeldia
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.