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MARCELO COELHO
Dimensões do tsunami
Diferentemente de outros desastres e tragédias
-o atentado de 11 de Setembro é
o exemplo mais óbvio-, o maremoto na Ásia gerou pouquíssimas
imagens de impacto. A violência
do acontecimento parece desproporcional diante das fotos que o
registram: regiões alagadas, vistas de avião, podem, sem dúvida,
inspirar consternação, mas não
correspondem à dimensão tremenda dos fatos.
Desta vez, até onde eu possa
sentir, não se deu a tão criticada
"espetacularização" da tragédia.
Claro que isso não é, por si mesmo, algo a ser recebido como uma
boa notícia; do ponto de vista de
quem sofreu com a desgraça, tanto faz, em última análise, se houve ou não espetáculo.
As críticas em torno da "espetacularização" disso ou daquilo às
vezes me parecem um pouco suspeitas. Existe, sem dúvida, a possibilidade de se extrair um gozo
mórbido (e bom lucro) de cenas
exibindo a desgraça alheia. Mas
um interdito completo ao que
possa haver de emocionante e
sensacional numa imagem trágica não teria por que tornar nossa
solidariedade às vítimas especialmente intensa ou eficaz.
De qualquer modo, o tsunami
se tornou mais assustador, mais
incompreensível, mais cruel na
medida mesma em que, num sentido muito particular, parece não
ter sido visto por ninguém. As ondas imensas que Hollywood produziu, de "O Destino do Poseidon" (1972) a "O Dia Depois de
Amanhã", tinham tamanho, forma e, por assim dizer, rosto definido. O próprio fato de que, agora, se usa mais a palavra "tsunami" do que "maremoto" parece
simbolizar a estranheza enigmática, traiçoeira, felina, estereotipadamente "oriental" do cataclismo.
Sem nenhuma foto de ondas do
tamanho de edifícios, que alguém
pudesse identificar de longe com
um binóculo -e os registros tirados de satélite, repetidamente publicados nos jornais, deram pouca idéia do tamanho real das coisas-, ficou mais forte, para mim,
a sensação de que a desgraça pode ocorrer a qualquer momento.
Sempre tive sonhos com maremoto. Raras vezes eram aterrorizantes, trazendo mais uma mistura
silenciosa de ameaça e abandono,
de atração abissal e insurgência
desmedida. Apesar da tragédia,
ou melhor, por causa dela, novos
tsunamis parecem ainda ocultar-se em algum lugar mais perto do
que eu pensava.
A circunstância de que foram
atingidas áreas turísticas conta
muito, é claro, para a nossa sensação de medo. Entre as vítimas
estão pessoas "como nós", isto é,
não-vinculadas a nenhuma tradição autóctone de miséria e crônica desgraça. Que se atinjam lugares paradisíacos, eis um fato
que só pode contar como uma
perfídia a mais da natureza.
Aliás, imagino que muita coisa
foi destruída justamente porque
era "ecologicamente correta": hotéis do tipo Hilton talvez tivessem
sorte melhor do que pequenos
bangalôs de praia.
Uma foto, entretanto, destaca-se em toda a desgraça. Foi publicada no dia 30 de dezembro e
mostra um porto em Banda Aceh,
na Indonésia. O que vemos, inicialmente, é apenas uma quantidade enorme de ripas de madeira
acumuladas na praia; apenas um
caso extremo, diríamos, de poluição das águas. Um colchão xadrez vermelho e preto, alguns recipientes de plástico, se destacam
entre os dejetos. É preciso olhar
pela terceira vez para notar que a
eles se misturam dezenas e dezenas de corpos cinzentos, todos virados de costas, quase tão numerosos quanto os pedaços de madeira.
O horror da cena -como o próprio tsunami- não se exibe à
primeira vista, não é inteligível de
imediato, talvez nem mesmo se
imprima na memória com o vigor
das imagens do atentado ao
WTC, mas por isso mesmo -ao
exigir nossa participação intelectual para ser absorvido- se torna apavorante.
A reação das pessoas diante do
11 de Setembro foi de incredulidade: por mais que se repetissem as
cenas dos aviões batendo nas torres, aquilo parecia não ter acontecido. Com aquela foto, que não
mostrava o maremoto cinematograficamente, somos nós mesmos
-ao interpretá-la, ao decodificá-la aos poucos- que nos convencemos de que a tragédia ocorreu.
O mundo do "espetáculo" talvez tenha, assim, alguma dose de
irrealidade a acompanhá-lo. O
que não impede ninguém de se
solidarizar com as vítimas das
torres gêmeas, nem de saber que
aquilo de fato aconteceu. Já a foto
de Banda Aceh evoca não o cinema-catástrofe, mas certas instalações de arte contemporânea. Sua
estranheza, sua horrível realidade talvez sejam menos "midiáticas" do que as cenas do 11 de Setembro; mas a foto não deixa de
ter, é claro, uma dimensão estética. Não no sentido de ser bonita
ou feia, mas da adequação de sua
linguagem, do repertório cultural
que pressupõe no espectador, do
grau de obviedade ou de opacidade que possua...
Não é o caso de dizer que "tudo
é espetáculo", que na mídia tudo
vira objeto de fruição e entretenimento. A não ser que voltemos à
idéia religiosa de uma proibição
total das imagens, sempre está em
jogo a forma de apresentá-las.
Entre o sensacionalismo e a frieza, a apelação e a tecnicidade, é
difícil estabelecer uma linha muito precisa. Essas discussões rapidamente se esgotam na linguagem da repugnância e da condenação moral, mas são sempre
-qualquer o lado que se tome
nelas- estéticas também.
Falando nisso, o jeito mais fácil
que encontrei para dar uma contribuição às vítimas do maremoto
foi no site da amazon: www.amazon.com.
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