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Primeiro capítulo da minissérie dedica-se à evocação amena e piedosa da meninice mineira de Juscelino Kubitschek, lança um vilão, o Coronel Licurgo, e anuncia a atmosfera de dinamismo econômico e idílio seresteiro que envolvia o presidente
JK
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
No começo, vemos apenas
um close do cabelo coberto
de brilhantina, as mãos arrumando a gravata borboleta branca da
casaca: o presidente eleito, de costas, está se aprontando para a posse. Por fim, o seu rosto se revela.
Mas não é Juscelino, é José Wilker! Apesar dos esforços faciais do
ator, franzindo os olhos e comprimindo a boca no sorriso típico de
JK, qualquer semelhança tem jeito de ser mera coincidência.
A estranheza dessa aparição se
acentuou ao longo do primeiro
capítulo de "JK", minissérie da
Globo que estreou nesta terça-feira: somos transportados num
flashback para Diamantina, e nada menos do que quatro pessoas
irão encarnar Juscelino: um bebê
coberto de sangue, no dispensável
clichê de uma cena de parto com
Julia Lemmertz; um menino quietinho e estudioso, como é de se esperar de quem um dia vai dar certo na vida; um adolescente igualmente esforçado e pacato, de
olhos grandes e adocicados, que
em nada sugere o comportamento irrequieto, industrioso e trêfego que se associa a JK; e, por fim,
encarnando o Juscelino jovem,
romântico, com poesias na ponta
da língua, um Wagner Moura já
meio grandote para o papel.
Tantas transformações fisionômicas até certo ponto são de praxe em minisséries históricas. Aqui
pode haver outra explicação. Cada novo presidente que aparece
no Brasil procura se comparar a
JK. Ele funciona como uma espécie de ectoplasma à procura de
uma nova encarnação: que ele encarne em José Wilker ou Wagner
Moura não desafia mais a nossa
credulidade do que apresentá-lo
redivivo em FHC ou em Lula.
A propósito de Lula, as comparações se tornam um tanto embaraçosas. Pois a minissérie mostra
Juscelino como um garoto também pobre, de pé no chão, com a
mãe quase passando fome. Só que
o nosso Nonô -este o apelido de
JK em Diamantina- nunca desistiu de estudar, sacrificando tudo pelo sonho de virar médico.
Por mais que se insistisse nesse
ponto, não era suficiente para
ocupar todo o vasto primeiro capítulo da minissérie. A força de
vontade de Juscelino, embora admirável, não tem como emocionar o espectador. Mortes depressa anunciadas, e lentamente encenadas, encarregam-se desse aspecto. A do pai de JK -Fábio Assunção, um rosto moderno demais para o papel- é o momento
mais tocante do capítulo.
O problema, mais do que emocionar, era entretanto assegurar
algum tipo de conflito, de dramaticidade, a um capítulo inteiramente voltado à evocação amena
e piedosa de uma meninice em
Minas, sem defeitos.
E aqui entra o pior e o melhor
do capítulo: a figura estereotipada
e estrebuchante do Coronel Licurgo (personagem ficcional de
Luis Melo), que será o vilão da
primeira parte da minissérie. Carola e lascivo, de chicote e capa
preta, ele transita entre o folhetinesco e o alegórico; entre o vilão
de cinema mudo e a diluição de
algum endemoninhado jagunço
glauberiano.
Pode-se intuir que, em sua religiosidade obscurantista, o Coronel Licurgo funciona como prefiguração dos adversários que JK
enfrentaria no futuro: Carlos Lacerda, os militares, os reacionários católicos da UDN. Mas o
ameno Juscelino de Diamantina
ainda não convence como protagonista. Não se viu um milímetro
de política neste primeiro capítulo. Contra o violento coronel escravocrata, somente um adversário impessoal, anônimo, se insurge: o Progresso, representado pela
luz elétrica, pelo trem de ferro, e
pela Rede Globo da época, o teatro de revista, que escandalizava
Diamantina com o maxixe.
Nada mais jusceliniano do que
essa confiança num progresso
sem conflito. Seu governo, cheio
de realizações mas conciliador
com as oligarquias rurais, por isso
mesmo ficou com a imagem de
ter "dado certo", misturando dinamismo econômico e idílio seresteiro; a minissérie capta essa
ideologia direitinho.
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