São Paulo, quinta-feira, 05 de janeiro de 2006

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Primeiro capítulo da minissérie dedica-se à evocação amena e piedosa da meninice mineira de Juscelino Kubitschek, lança um vilão, o Coronel Licurgo, e anuncia a atmosfera de dinamismo econômico e idílio seresteiro que envolvia o presidente

JK

MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA

No começo, vemos apenas um close do cabelo coberto de brilhantina, as mãos arrumando a gravata borboleta branca da casaca: o presidente eleito, de costas, está se aprontando para a posse. Por fim, o seu rosto se revela. Mas não é Juscelino, é José Wilker! Apesar dos esforços faciais do ator, franzindo os olhos e comprimindo a boca no sorriso típico de JK, qualquer semelhança tem jeito de ser mera coincidência.
A estranheza dessa aparição se acentuou ao longo do primeiro capítulo de "JK", minissérie da Globo que estreou nesta terça-feira: somos transportados num flashback para Diamantina, e nada menos do que quatro pessoas irão encarnar Juscelino: um bebê coberto de sangue, no dispensável clichê de uma cena de parto com Julia Lemmertz; um menino quietinho e estudioso, como é de se esperar de quem um dia vai dar certo na vida; um adolescente igualmente esforçado e pacato, de olhos grandes e adocicados, que em nada sugere o comportamento irrequieto, industrioso e trêfego que se associa a JK; e, por fim, encarnando o Juscelino jovem, romântico, com poesias na ponta da língua, um Wagner Moura já meio grandote para o papel.
Tantas transformações fisionômicas até certo ponto são de praxe em minisséries históricas. Aqui pode haver outra explicação. Cada novo presidente que aparece no Brasil procura se comparar a JK. Ele funciona como uma espécie de ectoplasma à procura de uma nova encarnação: que ele encarne em José Wilker ou Wagner Moura não desafia mais a nossa credulidade do que apresentá-lo redivivo em FHC ou em Lula.
A propósito de Lula, as comparações se tornam um tanto embaraçosas. Pois a minissérie mostra Juscelino como um garoto também pobre, de pé no chão, com a mãe quase passando fome. Só que o nosso Nonô -este o apelido de JK em Diamantina- nunca desistiu de estudar, sacrificando tudo pelo sonho de virar médico.
Por mais que se insistisse nesse ponto, não era suficiente para ocupar todo o vasto primeiro capítulo da minissérie. A força de vontade de Juscelino, embora admirável, não tem como emocionar o espectador. Mortes depressa anunciadas, e lentamente encenadas, encarregam-se desse aspecto. A do pai de JK -Fábio Assunção, um rosto moderno demais para o papel- é o momento mais tocante do capítulo.
O problema, mais do que emocionar, era entretanto assegurar algum tipo de conflito, de dramaticidade, a um capítulo inteiramente voltado à evocação amena e piedosa de uma meninice em Minas, sem defeitos.
E aqui entra o pior e o melhor do capítulo: a figura estereotipada e estrebuchante do Coronel Licurgo (personagem ficcional de Luis Melo), que será o vilão da primeira parte da minissérie. Carola e lascivo, de chicote e capa preta, ele transita entre o folhetinesco e o alegórico; entre o vilão de cinema mudo e a diluição de algum endemoninhado jagunço glauberiano.
Pode-se intuir que, em sua religiosidade obscurantista, o Coronel Licurgo funciona como prefiguração dos adversários que JK enfrentaria no futuro: Carlos Lacerda, os militares, os reacionários católicos da UDN. Mas o ameno Juscelino de Diamantina ainda não convence como protagonista. Não se viu um milímetro de política neste primeiro capítulo. Contra o violento coronel escravocrata, somente um adversário impessoal, anônimo, se insurge: o Progresso, representado pela luz elétrica, pelo trem de ferro, e pela Rede Globo da época, o teatro de revista, que escandalizava Diamantina com o maxixe.
Nada mais jusceliniano do que essa confiança num progresso sem conflito. Seu governo, cheio de realizações mas conciliador com as oligarquias rurais, por isso mesmo ficou com a imagem de ter "dado certo", misturando dinamismo econômico e idílio seresteiro; a minissérie capta essa ideologia direitinho.


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