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Dupla de pianistas interpretam obras de Ravel e Dukas em CD
Argerich e Rabinovitch fazem
leituras definitivas de Strauss
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
Gosto não se discute, dizem;
mas eu só vim a gostar de Richard Strauss (1864-1949) bem
tarde, e discutindo. Minha reeducação começou com as gravações e escritos do pianista Glenn
Gould (em "The Glenn Gould
Reader", Knopf, 1984) e deu
outro passo com os comentários
de Edward Said, em seu livro
"Elaborações Musicais" (Imago, 1992). Continua agora, de
forma decisiva, com este novo
CD de Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, tocando
música para dois pianos, do início do século 20.
É fácil não gostar de Strauss,
um homem truculento, mais
amigo do dinheiro do que dos
seus amigos, colaborador dos
nazistas e presidente-fundador
da "Câmara Musical" de Goebbels, dedicada à purificação racial da música alemã.
E é difícil não sentir repulsa
pelo que há de bombástico e
sensacionalista nos seus poemas
sinfônicos, de calculada perversidade nas óperas e de kitsch por
tudo, mesmo em sua tão renomada arte de orquestrador.
Continuo pensando nele assim; mas aprendi a reconhecer,
nalgumas obras -e em passagens isoladas de quase todas-
uma personalidade musical extraordinária, absolutamente individual, separada de sua época
e capaz de exprimir felicidades e
transfigurações raras.
Strauss talvez não seja "o
maior nome da música do nosso
tempo", como queria Glenn
Gould. Mas a progressão não-linear dessa música, que encanta
Said, o lirismo extático de suas
canções, com ou sem palavras, o
controle estupendo e riquíssimo
do contraponto e o que Gould
chama de "gloriosa inevitabilidade das harmonias", tudo isto
se conjuga nas câmaras da memória, com a força amoral de
uma música sem raça e sem dono.
A "Sinfonia Doméstica" de
Strauss, de 1904, é a peça de resistência desse CD, que dá continuidade a uma série maravilhosa de discos da dupla Argerich-Rabinovitch.
Martha Argerich, aos 55 anos,
está tocando cada vez melhor, e
seu parceiro se deixa encantar,
no sentido estrito da palavra,
por ela.
Variações complexas de ritmo
e humor, exuberâncias de afeto
e textura, ironias e virtuosismo
soam sempre fluentes e além de
fluentes, inteligentes e além de
inteligentes, alguma coisa mais.
A "Canção de Ninar" e o
"Adagio" da "Sinfonia",
apresentados aqui em preto-e-branco e milhares de cinzas, são interpretações para as
quais a gente pode arriscar um
adjetivo impossível: definitivas.
Dukas e Ravel
O disco traz ainda uma versão
para dois pianos do próprio Rabinovitch do "Aprendiz de Feiticeiro" de Paul Dukas
(1865-1935).
Contemporâneo refinado de
Debussy e Ravel, autor das lindas "Variações sobre um Tema
de Rameau" para piano e da
pouco conhecida, prematuramente freudiana ópera "Ariane
et Barbe-Bleue", o nome de Dukas parece irremediavelmente
associado ao "Aprendiz", depois que Walt Disney fez uso
dessa música para a sequência
de Mickey Mouse em "Fantasia". Triste destino, para uma
peça inspirada em Goethe e que
permanece, como se pode ver,
um dos mais sedutores "scherzos" modernos.
Para completar, Argerich e
Rabinovitch tocam ainda a versão para dois pianos de "La Valse", de Ravel (1875-1937). Nessa
valsa que, a princípio, só se adivinha, nas profundezas, e que
gradualmente vai surgindo,
mais como uma lembrança do
que um acontecimento, nessa
valsa sobre valsas que não existem que acaba se consumindo
em delírios giratórios, um mundo inteiro celebra a presença
fantasiosa do que já não é mais.
É uma dança de morte, também, em pleno período do entreguerras; a tradução das valsas
de Strauss (Johann, não Richard) para uma outra língua,
da nostalgia e da rememoração.
É a valsa de todas as valsas, a
mais elegante das alucinações,
executada com alucinatória elegância pela pianista das pianistas e seu parceiro de dança.
Disco: Obras de Strauss, Ravel e Dukas
Intérpretes: Martha Argerich e
Alexandre Rabinovitch
Lançamento: Teldec
Quanto: R$ 18, em média
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