São Paulo, quarta, 5 de fevereiro de 1997.

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Dupla de pianistas interpretam obras de Ravel e Dukas em CD
Argerich e Rabinovitch fazem leituras definitivas de Strauss

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

Gosto não se discute, dizem; mas eu só vim a gostar de Richard Strauss (1864-1949) bem tarde, e discutindo. Minha reeducação começou com as gravações e escritos do pianista Glenn Gould (em "The Glenn Gould Reader", Knopf, 1984) e deu outro passo com os comentários de Edward Said, em seu livro "Elaborações Musicais" (Imago, 1992). Continua agora, de forma decisiva, com este novo CD de Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch, tocando música para dois pianos, do início do século 20.
É fácil não gostar de Strauss, um homem truculento, mais amigo do dinheiro do que dos seus amigos, colaborador dos nazistas e presidente-fundador da "Câmara Musical" de Goebbels, dedicada à purificação racial da música alemã.
E é difícil não sentir repulsa pelo que há de bombástico e sensacionalista nos seus poemas sinfônicos, de calculada perversidade nas óperas e de kitsch por tudo, mesmo em sua tão renomada arte de orquestrador.
Continuo pensando nele assim; mas aprendi a reconhecer, nalgumas obras -e em passagens isoladas de quase todas- uma personalidade musical extraordinária, absolutamente individual, separada de sua época e capaz de exprimir felicidades e transfigurações raras.
Strauss talvez não seja "o maior nome da música do nosso tempo", como queria Glenn Gould. Mas a progressão não-linear dessa música, que encanta Said, o lirismo extático de suas canções, com ou sem palavras, o controle estupendo e riquíssimo do contraponto e o que Gould chama de "gloriosa inevitabilidade das harmonias", tudo isto se conjuga nas câmaras da memória, com a força amoral de uma música sem raça e sem dono.
A "Sinfonia Doméstica" de Strauss, de 1904, é a peça de resistência desse CD, que dá continuidade a uma série maravilhosa de discos da dupla Argerich-Rabinovitch.
Martha Argerich, aos 55 anos, está tocando cada vez melhor, e seu parceiro se deixa encantar, no sentido estrito da palavra, por ela.
Variações complexas de ritmo e humor, exuberâncias de afeto e textura, ironias e virtuosismo soam sempre fluentes e além de fluentes, inteligentes e além de inteligentes, alguma coisa mais.
A "Canção de Ninar" e o "Adagio" da "Sinfonia", apresentados aqui em preto-e-branco e milhares de cinzas, são interpretações para as quais a gente pode arriscar um adjetivo impossível: definitivas.
Dukas e Ravel
O disco traz ainda uma versão para dois pianos do próprio Rabinovitch do "Aprendiz de Feiticeiro" de Paul Dukas (1865-1935).
Contemporâneo refinado de Debussy e Ravel, autor das lindas "Variações sobre um Tema de Rameau" para piano e da pouco conhecida, prematuramente freudiana ópera "Ariane et Barbe-Bleue", o nome de Dukas parece irremediavelmente associado ao "Aprendiz", depois que Walt Disney fez uso dessa música para a sequência de Mickey Mouse em "Fantasia". Triste destino, para uma peça inspirada em Goethe e que permanece, como se pode ver, um dos mais sedutores "scherzos" modernos.
Para completar, Argerich e Rabinovitch tocam ainda a versão para dois pianos de "La Valse", de Ravel (1875-1937). Nessa valsa que, a princípio, só se adivinha, nas profundezas, e que gradualmente vai surgindo, mais como uma lembrança do que um acontecimento, nessa valsa sobre valsas que não existem que acaba se consumindo em delírios giratórios, um mundo inteiro celebra a presença fantasiosa do que já não é mais.
É uma dança de morte, também, em pleno período do entreguerras; a tradução das valsas de Strauss (Johann, não Richard) para uma outra língua, da nostalgia e da rememoração. É a valsa de todas as valsas, a mais elegante das alucinações, executada com alucinatória elegância pela pianista das pianistas e seu parceiro de dança.

Disco: Obras de Strauss, Ravel e Dukas
Intérpretes: Martha Argerich e Alexandre Rabinovitch
Lançamento: Teldec
Quanto: R$ 18, em média


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