São Paulo, #!L#Sábado, 05 de Fevereiro de 2000


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RESENHA DA SEMANA
A lição do diabo

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha


"O Estranho Misterioso" (1916) é um texto póstumo e o menos conhecido de Mark Twain (1835-1910). Foi escrito quando o autor estava no fim da vida, amargurado com a morte da mulher, a solidão e a mesquinharia dos homens.
Como outros textos desse período do escritor, é considerado uma obra pessimista (e menor) de um dos fundadores do romance americano. Uma fábula desiludida com a pequeneza do caráter humano.
À primeira vista, pode parecer o oposto dos romances ditos "humoristas", que consagraram o autor, como "As Aventuras de Tom Sawyer" (1876) e "Huckleberry Finn" (1884). Mas seu germe já estava na consciência lúcida daqueles personagens juvenis do Mississippi. Apesar de todo o pessimismo, "O Estranho Misterioso" é, no fundo, uma parábola sobre o humor.
Uma das características mais assustadoras do ser humano costuma ser a incapacidade de autonomia de julgamento para estabelecer critérios próprios de ética, justiça ou gosto.
Raramente os indivíduos discordam do consenso (hoje tão bem representado pelo mercado), por mais injusto, obtuso ou equivocado que este seja. Compartilham uma tendência ao preconceito, a seguir o caminho mais fácil, na corrente da maioria (por vezes guiada por uns poucos), em vez de pensar por conta própria, muitas vezes na contramão, o que demanda coragem, bom senso e determinação.
Num povoado austríaco isolado do resto do mundo e não por acaso denominado Eseldorf (aldeia do Asno), onde em 1590 ainda se vivia como na Idade Média, aparece um belo dia um estrangeiro chamado Satã.
O estranho se apresenta primeiro a três meninos, de quem fica amigo. Convence-os de que é um anjo, sobrinho daquele outro conhecido pelo mesmo nome e cujos pecados não compartilha: "É uma boa família, a nossa -disse Satã- não tem família melhor. Ele é o único membro da família que pecou".
E daí em diante passa a interagir com o resto da aldeia, mudando o destino de alguns, em geral para pior, criando confusão, sofrimento e morte, mas sempre, ao que alega, com a "melhor" das intenções.
A história é narrada por um dos meninos cuja simpatia obtusa e inconsciente é suficiente para pontuar o texto com laivos de sarcasmo e humor negro: "E enquanto lá fora trovejava e relampejava, ele nos falava de fantasmas e horrores, de batalhas, assassinatos, mutilações e coisas do gênero, criando um ambiente muito alegre e aconchegante".
Como um mestre, Satã expõe aos meninos, com exemplos ao vivo, sua visão das fraquezas e mesquinharias humanas. É uma visão cruel, mas lúcida, em que a suposta bondade de Deus é a primeira a ir por água abaixo, assim como a justiça intolerante e sanguinária da Igreja.
Para culminar, o homem seria portador do que se orgulha de chamar de "senso moral", "a faculdade que nos permite distinguir o bem do mal", segundo o padre da aldeia. "Agora, que vantagem ele tira disso? Ele está sempre escolhendo, e nove vezes em cada dez ele prefere o errado", rebate o estrangeiro.
A palavra de Satã denuncia a crueldade, a hipocrisia e a covardia de homens que se dizem portadores do "senso moral" num mundo de injustiças por eles mesmos perpetradas. "O Estranho Misterioso" é, assim, uma parábola irônica que nada tem de esotérica ou mística. Uma parábola totalmente racional sobre a incapacidade de autonomia de julgamento e discernimento, sobre o indivíduo que "anda às cegas".
É o caso do narrador, um pequeno idiota, passivo e irresponsável, um maria-vai-com-as-outras incapaz de tomar o partido da justiça ou de conceber princípios por iniciativa própria. Satã lhe mostra que só a experiência pode fazê-lo ver e pensar por conta própria. E que não existe nada além desse pensamento.
Ao final da vida, é justamente o niilismo profundo ("Não há nenhum Deus, nenhum Universo, nenhuma raça humana, nenhuma vida terrena, nenhum Paraíso, nenhum Inferno. É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo") que permite a Mark Twain fazer, com este estranho livro, por meio de uma irônica representação do demônio, o elogio de um humor radical.
Pela experiência, o indivíduo pode chegar à consciência da sua própria insignificância e à consequente disposição de rir de si mesmo, o que lhe dá ao menos um critério básico e idôneo de julgamento: "Acaso chegará o dia em que a raça humana irá perceber como são engraçadas essas suas infantilidades e rir delas, e rindo delas, destruí-las? Pois sua raça, em sua pobreza, sem dúvida possui uma arma realmente eficaz: o riso. É a lição do diabo.


Avaliação:    


Livro: O Estranho Misterioso Autor: Mark Twain Tradução: Merle Scoss Editora: Axis Mundi Quanto: R$ 24 (214 págs.)

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