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RESENHA DA SEMANA
A lição do diabo
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
"O Estranho
Misterioso"
(1916) é um texto
póstumo e o menos conhecido
de Mark Twain
(1835-1910). Foi escrito quando
o autor estava no fim da vida,
amargurado com a morte da
mulher, a solidão e a mesquinharia dos homens.
Como outros textos desse período do escritor, é considerado uma obra pessimista (e menor) de um dos fundadores do
romance americano. Uma fábula desiludida com a pequeneza do caráter humano.
À primeira vista, pode parecer o oposto dos romances ditos "humoristas", que consagraram o autor, como "As
Aventuras de Tom Sawyer"
(1876) e "Huckleberry Finn"
(1884). Mas seu germe já estava
na consciência lúcida daqueles
personagens juvenis do Mississippi. Apesar de todo o pessimismo, "O Estranho Misterioso" é, no fundo, uma parábola
sobre o humor.
Uma das características mais
assustadoras do ser humano
costuma ser a incapacidade de
autonomia de julgamento para
estabelecer critérios próprios
de ética, justiça ou gosto.
Raramente os indivíduos discordam do consenso (hoje tão
bem representado pelo mercado), por mais injusto, obtuso
ou equivocado que este seja.
Compartilham uma tendência
ao preconceito, a seguir o caminho mais fácil, na corrente
da maioria (por vezes guiada
por uns poucos), em vez de
pensar por conta própria, muitas vezes na contramão, o que
demanda coragem, bom senso
e determinação.
Num povoado austríaco isolado do resto do mundo e não
por acaso denominado Eseldorf (aldeia do Asno), onde em
1590 ainda se vivia como na
Idade Média, aparece um belo
dia um estrangeiro chamado
Satã.
O estranho se apresenta primeiro a três meninos, de quem
fica amigo. Convence-os de
que é um anjo, sobrinho daquele outro conhecido pelo
mesmo nome e cujos pecados
não compartilha: "É uma boa
família, a nossa -disse Satã-
não tem família melhor. Ele é o
único membro da família que
pecou".
E daí em diante passa a interagir com o resto da aldeia,
mudando o destino de alguns,
em geral para pior, criando
confusão, sofrimento e morte,
mas sempre, ao que alega, com
a "melhor" das intenções.
A história é narrada por um
dos meninos cuja simpatia obtusa e inconsciente é suficiente
para pontuar o texto com laivos de sarcasmo e humor negro: "E enquanto lá fora trovejava e relampejava, ele nos falava de fantasmas e horrores, de
batalhas, assassinatos, mutilações e coisas do gênero, criando um ambiente muito alegre e
aconchegante".
Como um mestre, Satã expõe
aos meninos, com exemplos ao
vivo, sua visão das fraquezas e
mesquinharias humanas. É
uma visão cruel, mas lúcida,
em que a suposta bondade de
Deus é a primeira a ir por água
abaixo, assim como a justiça
intolerante e sanguinária da
Igreja.
Para culminar, o homem seria portador do que se orgulha
de chamar de "senso moral", "a
faculdade que nos permite distinguir o bem do mal", segundo o padre da aldeia. "Agora,
que vantagem ele tira disso? Ele
está sempre escolhendo, e nove
vezes em cada dez ele prefere o
errado", rebate o estrangeiro.
A palavra de Satã denuncia a
crueldade, a hipocrisia e a covardia de homens que se dizem
portadores do "senso moral"
num mundo de injustiças por
eles mesmos perpetradas. "O
Estranho Misterioso" é, assim,
uma parábola irônica que nada
tem de esotérica ou mística.
Uma parábola totalmente racional sobre a incapacidade de
autonomia de julgamento e
discernimento, sobre o indivíduo que "anda às cegas".
É o caso do narrador, um pequeno idiota, passivo e irresponsável, um maria-vai-com-as-outras incapaz de tomar o
partido da justiça ou de conceber princípios por iniciativa
própria. Satã lhe mostra que só
a experiência pode fazê-lo ver e
pensar por conta própria. E
que não existe nada além desse
pensamento.
Ao final da vida, é justamente
o niilismo profundo ("Não há
nenhum Deus, nenhum Universo, nenhuma raça humana,
nenhuma vida terrena, nenhum Paraíso, nenhum Inferno. É tudo um sonho, um sonho grotesco e tolo") que permite a Mark Twain fazer, com
este estranho livro, por meio de
uma irônica representação do
demônio, o elogio de um humor radical.
Pela experiência, o indivíduo
pode chegar à consciência da
sua própria insignificância e à
consequente disposição de rir
de si mesmo, o que lhe dá ao
menos um critério básico e idôneo de julgamento: "Acaso
chegará o dia em que a raça humana irá perceber como são
engraçadas essas suas infantilidades e rir delas, e rindo delas,
destruí-las? Pois sua raça, em
sua pobreza, sem dúvida possui uma arma realmente eficaz:
o riso. É a lição do diabo.
Avaliação:
Livro: O Estranho Misterioso
Autor: Mark Twain
Tradução: Merle Scoss
Editora: Axis Mundi
Quanto: R$ 24 (214 págs.)
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