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CONTARDO CALLIGARIS
Volta a Dogville
Muitos leitores me escreveram comentando a coluna
de quinta passada, que tratava de
"Dogville", de Lars von Trier.
Agradeço a todos.
1) Alguns perguntam por que,
ao avaliar um filme, daríamos
peso às declarações do diretor:
"Não seria melhor considerar a
obra em si, sem interessar-se pelas
intenções do autor?". No caso,
pouco importaria que Von Trier
anunciasse estar apresentando a
"realidade" americana.
Problema: o que Von Trier declara em suas entrevistas não é
ausente do filme. Dogville é um
vilarejo americano. O protagonista masculino se chama Thomas
Edison. As fotografias da miséria
do mundo que acompanham os
créditos do filme sugerem uma relação causal: olhem para os horrores produzidos pelo espírito de
Dogville que estaria no âmago
dos EUA. Essa mensagem está na
obra.
Mas há uma questão mais geral. Com o estruturalismo dos
anos 60, triunfou a idéia de que
deveríamos entender as criações
sem pensar nos autores. O objeto
das ciências humanas não seria
mais o sujeito com suas intenções
confusas, absconsas e inexplicáveis, mas a matéria de seus produtos. Limitando-se a essa matéria (texto, filme, discurso etc.), seria possível operar com método e
rigor. As ciências humanas alcançariam, enfim, as exatas.
O movimento (no qual militei)
prosperou eliminando o que era
refratário a seu projeto racionalista (não sei o que fazer com a
complexidade das intenções, portanto elas não são relevantes).
Com isso, ele se tornou imoral.
Um caso foi decisivo para mim: o
grupo Tel Quel decidiu que "Bagatelle pour un Massacre", de
Louis-Ferdinand Céline, era uma
obra de arte sublime e uma esperança da Revolução (sempre iminente). Pouco importava que o livro fosse uma expressão revoltante de racismo. As intenções do autor deviam ser desconsideradas,
pois a materialidade do texto, por
sua novidade estilística, nos
transformaria em homens do futuro. Como dizem os cariocas
quando querem sair de perto: a
gente se vê na praia.
Hoje, leio, escuto, vejo e entendo
levando em conta as intenções
dos autores. Claro, a obra diz
mais que essas intenções, mas, de
qualquer forma, para mim, as intenções fazem parte da obra. A
crítica é um exercício, ao mesmo
tempo, estético e ético.
2) Outros leitores observam: "O
filme repreende os EUA que Von
Trier afirma não conhecer, e você
parece concluir que "Dogville" é a
expressão de um preconceito. Será que produzimos preconceitos a
cada vez que falamos de algo que
não conhecemos concretamente?".
Acho legítimo e interessante
que proponhamos entendimentos
ou interpretações de algo que não
conhecemos por experiência. O
preconceito é outra coisa. Explico.
É banal que, ao descrever uma
reunião, digamos: "Havia cinco
pessoas". No entanto, havia seis: a
gente não se contou entre os presentes. Esse deslize exemplifica o
oitavo pecado capital: tirar o corpo fora, ou seja, falar dos outros e
do mundo como se nossa subjetividade não atrapalhasse nem o
mundo nem nossa fala. O preconceito é filho desse pecado: se me
esqueço de mim e de minha história na hora de falar dos outros, é
provável que eu acabe lhes atribuindo exatamente aquela parte
de mim ou de minha história que
quis suprimir.
Isso acontece no caso do filme
de Von Trier. Quem conhece as
pequenas comunidades americanas e a história da Europa constata que Dogville é diferente das
primeiras, mas encena um momento triste da segunda. Uma leitora, Anette Lewin, observou que,
no vilarejo que evoca o drama de
milhares de judeus escondidos pela Europa afora nos anos 40, o cachorro da cidade (a cidade do
cão, Dogville) é chamado de Moisés: vingança do inconsciente.
Corolário. Se, ao contar uma
história, tirarmos o corpo fora, a
história contada será esquemática, pois só temos acesso à complexidade do humano reconhecendo
nossa própria complexidade, ou
seja, nos colocando em causa.
Aqui é oportuno que responda a
uma leitora que não entende bem
a razão de minha "ira". Ela é subjetiva. Nasci europeu (como Von
Trier), italiano, filho de um militante antifascista: há esquecimentos com os quais não gosto de
brincar e não gosto que alguém
brinque.
Nota. Para quem não conhece a
"América profunda", uma sugestão: para criticar a pequena comunidade americana, melhor ler
Tocqueville que ver "Dogville".
Agora, para criticar o racismo e o
fechamento na sociedade européia, aí sim, é bom ver "Dogville".
Atenuante. O dito oitavo pecado capital está entre os mais praticados. Há o marido que quer
pular a cerca e por isso se torna
ciumento. Há o jovem que não
tem a coragem de seguir seus desejos e por isso acha os pais conformistas. Somos todos Von
Triers.
3) Um colega me dá a lição: o
psicanalista não deveria, ele diz,
interpretar, mas ajudar o sujeito
a interpretar-se sozinho. É bem o
que espero que Von Trier faça.
Escrevi sobre Von Trier a mesma coisa que eu diria, logo na primeira entrevista, a um paciente
suíço que me contasse que acha o
Brasil um horror porque os brasileiros são muito pontuais e ficaram com o dinheiro dos judeus
durante a Segunda Guerra.
Morei bastante tempo em Porto
Alegre e devo ter sido influenciado pelo analista de Bagé: quando
é preciso, dou um joelhaço.
4) Outros leitores acham que
minha apreciação negativa de
"Dogville" seria um efeito de filoamericanismo. É o contrário. A
crítica de Von Trier pratica o oitavo pecado capital, que consiste
em atribuir aos outros as mazelas
da gente. Não diz nada contra os
outros e nos mantém na ignorância do que deveríamos criticar em
nós mesmos. Seu maior defeito é
de ser ineficaz.
@ - ccalligari@uol.com.br
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